Paixão Nacional

Paixão Nacional


No Brasil, o contato com bebidas alcoólicas começa cedo e o consumo também. Separei os dois momentos, pois o primeira ajuda muito a dar um ar de naturalidade pro segundo.

Em geral a gente começa a beber com os amigos, mas conhece a bebida em idades muito tenras, quando acompanhamos os nossos pais a festas e mesmo a bares, que passaram a ter, pasmem, áreas infantis. Alguns eventos tem a cara inocente, mas promovem consumo massivo de bebidas alcoólicas e incluem atrações infantis na programação, incentivando a presença dos pequenos. Me parecem criminosos, mas também são usuais. Crianças aprendem pelo exemplo, e você sabe, aprendem com tudo: até festas religiosas tem sido desculpa para se tomar uma. 

Lá pelos anos 90, correu a onda da cozinha mediterrânea, uma dieta que incluía uma tacinha de vinho todos os dias. Alardeou-se evidencias de que os europeus viviam mais, por terem esse hábito. Balela. Hoje se sabe que o estudo não foi nada científico. Não sei de onde veio o mito, mas decerto as vinícolas gostaram. 

O setor de bebidas é bastante agressivo nos negócios e a sua atuação comercial se confunde com a manipulação sorrateira dos costumes, induzindo mudanças comportamentais profundas. O seu esforço tem custado fortunas, mas tem compensado.

Nos anos 80, as mulheres apareciam nos comerciais de cerveja como meros bibelôs, mas nos últimos anos o seu valor para a indústria mudou. O consumo de álcool pelo sexo feminino cresceu cerca de 40% entre 2013 e 2019. A Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (Pense) apontou que a experimentação de bebidas alcoólicas entre as meninas também teve um salto: em sete anos, subiu de 55% para 67,4%. 

Esses dados foram trazidos pela Dra. Alessandra Diehl, presidente da Associação Brasileira de Estudos sobre Álcool e Outras Drogas (Abead), que ressalta o papel da indústria nessa elevação do consumo: “O assédio do marketing, das propagandas, tem investido em vender bebida para as mulheres, utilizando, inclusive, ícones do universo feminino e da juventude. Além disso, em geral ataca valores que são caros para nós. Esse estímulo se apodera de elementos que são nossas bandeiras, mas de uma forma distorcida”, aponta a Dra. Alessandra. 

A cultura sertanejeira é um exemplo dessa distorção.

Por um lado, a naturalidade com que amigas tem se reunido em bares hoje em dia, é um sinal positivo, de conquista de espaços e igualdade, ainda que as coisas não estejam indo tão bem em outros ambientes, como no trabalho, onde elas perdem feio. 

Mas consumo e alcoolismo são coisas diferentes e como não existem no país, pesquisas sobre o alcoolismo entre as mulheres, ele grassa silencioso.

Indo do campo médico para o criminal, também aumentam os casos de mulheres embebedadas por seus acompanhantes, o que é facilitado por sua menor resistência ao álcool, e depois constrangidas, às vezes abusadas.

Pouca gente bebe álcool para melhorar a saúde ou para viver mais. Análises laboratoriais comprovam que o álcool é extremamente tóxico, agressivo ao organismo e tem efeitos colaterais. Então, o hábito de beber diariamente, ainda que pequenas quantidades, está longe de ser inofensivo.

A minha impressão é que o principal motivo para beber, ocultado pela desculpa de se estar apreciando néctares sublimes, é mesmo ficar meio alto e assim, como dizia um velho amigo, sair um pouco da realidade. Não vejo, em princípio, nenhum mal nessa pulsão, que acompanha o Homem desde priscas eras e nem censuro a busca de outros estados de consciência como os provocados pelo álcool, o que sempre foi o seu papel. Mas omitir esse fato e não lançar um alerta para os riscos do consumo, tem consequências.  

A principal é baixar a nossa guarda, iludindo-nos sobre o fato de que ao bebermos, aspectos psicológicos e físicos importantes são mesmo alterados. O estado de atenção, a prudência, a capacidade de avaliação e julgamento das situações, a percepção de espaço, direção e velocidade, a destreza e a agilidade, a ousadia, mudam, tanto em função da quantidade ingerida quanto da sensibilidade individual. Para alguns, o consumo é um estímulo festivo, mas numa parte considerável dos usuários ele gera descontrole.

Nem seria preciso comprovar. São do conhecimento público, os milhares de “acidentes” caseiros e de trânsito, atropelamentos e batidas, decisões estúpidas, desentendimentos, agressões, assassinatos e os incontáveis prejuízos de pequena monta, simples perdas e danos decorrentes do consumo de álcool. 

Só se resolve problemas que são assumidos como tais.

Nos finais de semana, se estou na estrada, costumo me lembrar de que alguém que passou o dia num churrasco fraterno, pode estar voltando pra casa, o filhão adormecido no banco de trás, e ele doido pra encontrar a amada... Imediatamente adoto a direção defensiva, mesmo sabendo que se encontrá-lo numa curva isso de pouco vai me adiantar.  

*Arquiteto, urbanista e professor