A modernidade quer ser religião

A modernidade quer ser religião


Mais uma vez, trago a argúcia de Chesterton para derrubar besteiras da moda. Ou para mata-las, não de inanição, mas de tanto comerem da própria modernidade temperada de sincretismo religioso ecumênico. O inglês é preciso, quando o acusam de esconder verdades personalíssimas modernas em sua defesa dos dogmas católicos.

Assim, o que realmente temos de martelar de alguma forma nas cabeças de todas essas pessoas é que um homem que pensa pode através do pensamento aprofundar-se cada vez mais no catolicismo, e não nas dificuldades sobre o catolicismo. Temos de fazê-los ver que a conversão é o começo de uma vida intelectual ativa, frutuosa, progressiva e inclusive aventureira. Pois é nisso que eles não conseguem neste momento chegar a acreditar. Dizem honestamente para si mesmos: “Sobre o que ele pode estar pensando, senão sobre os erros de Moisés, ou corajosamente desafiando todos os erros da Inquisição que existiu na Espanha?”. Temos de explicar de alguma forma que os grandes mistérios como a Santíssima Trindade ou o Santíssimo Sacramento são os pontos de partida para linhas de pensamento muito mais estimulantes, sutis e até mesmo individuais, comparadas às quais todo esse verniz cético é tão superficial, raso e empoeirado. Assim, aceitar a lógica católica como verdade é estar na atmosfera do absoluto, não apenas com São João Evangelista, mas com Platão e todos os grandes místicos do mundo. Exaltar a Missa é entrar num mundo magnífico de ideias metafísicas, que ilumina todas as relações da matéria e da mente, da carne e do espírito, das abstrações mais impessoais assim como dos afetos mais pessoais. Propor-se a diminuir ou minimizar a Missa através de uma efêmera argumentação sobre o que esta tinha em comum com mitologias, mitras ou os Mistérios, é colocar-se num estado de espírito mesquinho e pedante, não apenas inferior ao catolicismo, mas inferior inclusive ao mitraísmo.

Quando alguém diz, pela milésima vez, “a religião viva não está em velhos e empoeirados dogmas e doutrinas”, temos de interrompê-lo com uma espécie de grito, e dizer: “Veja, você está errado desde o princípio”. Se ele se dispusesse a perguntar o que são dogmas, descobriria que são precisamente os dogmas que são vivos, inspiradores, intelectualmente interessantes. O zelo pelo outro, a caridade e a unção são admiráveis como flores e frutos, mas se você está realmente interessado no princípio de vida, deve interessar-se pela raiz ou pelas sementes.

Em outras palavras, deve interessar-se de modo inteligente pela afirmação com a qual a coisa toda principiou, mesmo que seja apenas para negá-la. Mesmo que o crítico não consiga chegar a concordar com o católico, pode chegar a ver que são certas ideias sobre o Cosmo que o tornam católico. Pode ver que ser cósmico dessa maneira, e católico dessa maneira, é o que o torna diferente das outras pessoas; e que o torna, pelo menos, uma figura não desprovida de interesse na história humana. Nunca chegará perto disso sendo sentimentalista quanto aos sentimentos católicos, ou pontificando contra os pontífices católicos. Deve compreender as ideias como ideias; e descobrirá que as mais interessantes de todas são aquelas que os protestantes ou os ateus ou os moderninhos católicos não-praticantes desprezam como dogmas, em suas formas de olhar para a fé como um cliente seleciona itens em um cardápio de restaurante.

Por exemplo: a doutrina da dupla natureza de Cristo (desprezada pelos espíritas) é, no sentido mais genuíno, interessante; deveria ser interessante para qualquer um capaz de compreendê-la, bem antes de crer nela. A antiga seita dos monofisitas declarava que Cristo tinha apenas a natureza divina. A nova seita monofisita, que é a visão do espiritismo kardecista, declara que ele possuía apenas a natureza humana. Mas não é um trocadilho ou uma brincadeira, mas a verdade, dizer que o monofisita é monótono por natureza. Em qualquer das duas formas, está naturalmente numa única nota. 

Porém, só chamo a atenção para isso aqui, não para discutir sua verdade com aqueles que não o creem, mas apenas para insistir em seu intenso interesse intelectual para aqueles que o creem. Desejo apenas explicar, àqueles que se preocupam com isso, que uma mente repleta do verdadeiro conceito dessa dualidade tem muito o que pensar sobre esse assunto, e não tem necessidade de desenterrar deuses mortos para desacreditar o Homem Eterno. Não há para mim necessidade de ser modernista ou monofisita em meus pensamentos; pois acho essas opiniões muito mais enfadonhas e vulgares do que as minhas. 

Quando Cristo é equiparado a Osíris, não sobra quase nada de nenhum dos dois; mas Cristo, como concebido pela Igreja Católica, é Ele mesmo um complexo e uma combinação, não de duas coisas irreais, mas de duas coisas reais. Em resumo, em toda essa simples unificação de tradições, verdadeiras ou falsas, há algo que pode ser descrito simplesmente como enfadonho. Porém os dogmas não são enfadonhos. Mesmo as chamadas finas distinções doutrinais não são enfadonhas. São como as mais delicadas operações cirúrgicas, que separam nervo de nervo, mas dão a vida. E muito fácil achatar tudo num raio de quilômetros usando dinamite, se nosso único objetivo é dar morte. Mas assim como o fisiologista lida com tecidos vivos, o teólogo lida com ideias vivas; e se traça uma linha entre elas, é naturalmente uma linha muito fina. É um hábito, embora a esta altura já bastante desgastado, reclamar que os gregos ou italianos que disputavam sobre a Trindade ou o Santíssimo Sacramento partiam fios de cabelo.’ Não sei se partir cabelos é pior do que os tingir, na vã tentativa de imitar os cabelos loiros de Freia ou os cabelos negros de Cotito. A subdivisão de um fio de cabelo ao menos nos diz algo sobre sua estrutura; ao passo que seu mero tingimento não nos revela nada. A teologia de fato nos apresenta à estrutura das ideias, ao passo que o sincretismo teosófico apenas leva embora todas as cores dos coloridos contos de fadas do mundo. 

Porém meu único objetivo aqui é tranquilizar os bondosos críticos que estavam preocupados com a secreta moléstia de modernidade que deve estar consumindo minha mente vazia e só por isso, agora beata. Apresso-me a explicar que estou muito bem, obrigado; e que tenho muitas coisas em que pensar, sem cair numa loucura baconiana de paralelos pagãos, ou estabelecer a ligação entre o conto do touro morto por Mitras com a música de que a velha vaca morreu.

Por Rafael Corradi Nogueira