“Os negros não aceitaram. Toda noite, entravam na Matriz e roubavam...”

“Os negros não aceitaram. Toda noite, entravam  na Matriz e roubavam...”


Como cidadão itaunense e descendente de herança afro-brasileira, senti-me obrigado a sair da zona de estudos e expressar publicamente minha preocupação e indignação. Acredito que a frase acima não confrontou apenas a narrativa histórica do  município de Itaúna, mas também a ancestralidade de seus habitantes, que inclui a escravização de minha trisavó paterna, o nascimento da minha bisavó após a promulgação da Lei do Ventre Livre, e o eventual nascimento de meu avô, que só conseguiu o direito ao registro oficial de nascimento aos 25 anos em 1937, que posteriormente fixaram residência em Itaúna, local de descanso final de uma jornada marcante, deixando um valioso legado para seus descendentes — o direito à educação.    

Ao realizar pesquisas rotineiras para elaboração de meus trabalhos, me deparei com um texto complexo em todos os sentidos que está disponível no site da Prefeitura de Itaúna/MG. Assim, a narrativa histórica se apresentou confusa dificultando uma compreensão mais precisa. Após uma segunda leitura minuciosa, finalmente comecei a entender que o texto se tratava da “permuta de padroeiras” no município do século XIX. Mesmo tentando compreender a informação de que as “igrejas foram trocadas” naquela época, imagino que seria difícil transposição de duas construções, no entanto, dadas as informações de livros de história do município que registram esse acontecimento, percebi que seria uma troca de oragos, e não das edificações. 

Portanto, seria aceitável considerar isso como um mero “deslize histórico”, podendo até ser enviada uma mensagem à Secretaria de Cultura e Turismo de Itaúna, pedindo a retificação do texto, cujo material apresentado, nem sequer tiveram a preocupação de fornecer as referências adequadas e necessárias. À medida em que realizava a leitura mais atenta do texto, descobri que as informações, em parte, eram meramente baseadas em “achismos”, ou seja, um texto totalmente abstrato e desconecto da história do município. Porém, o mais alarmante ainda estava por vir, pois neste texto trazia uma declaração de que os negros naquela época “roubavam” dentro da igreja do arraial de Santana do Rio São João Acima, hoje Itaúna. Eis aqui, parte do trecho retirado do texto que está disponível no site da prefeitura de Itaúna:

“As igrejas foram trocadas. O problema é que os padres queriam manter as padroeiras. Sant’ana, dos portugueses, agora era dos negros. Senhora do Rosário, dos negros, virou padroeira dos brancos. Os negros não aceitaram. Toda noite, entravam na Matriz e roubavam a Imagem de Nossa Senhora do Rosário e levavam para a nova Capela, no alto do Morro. Sendo lenda ou não, fato é que essa história inspirou a festa mais tradicional da cidade: o Reinado.”

Como mencionado no texto acima, sendo lenda ou não, se registrou que os pretos que faziam parte da comunidade de Itaúna eram ladrões. Neste momento ficou evidente que os (in)responsáveis desta informação, estavam totalmente equivocados. Este incidente representa, no meu ponto de vista, uma violação e rompimento significativo do limite histórico, cultural e ético em toda a história do município, minando as extensas pesquisas e documentações registradas por historiadores e pesquisadores ao longo dos anos. Vale ressaltar que no censo inicial realizado em 1831, aproximadamente 70% da população do arraial de Santana (hoje Itaúna) era de herança afrodescendente. 

Até o momento presente, não encontrei nenhum registro ou declaração de qualquer historiador ou publicação que indique ou declare que os pretos naquela época, tenham praticado roubos à paróquia de Santana de Itaúna. Ao analisar cuidadosamente essa “barbárie histórica”, expresso a minha mais profunda frustação e a minha preocupação com a gestão e divulgação da história do nosso município.  É provável que muitos indivíduos que pesquisaram a história de Itaúna, neste período em que continua disponível essa matéria no site da Prefeitura, tenham encontrado essas informações, que supostamente seriam de “utilidade pública”, principalmente para a comunidade itaunense. No entanto, este não é o caso. 

É imprescindível que essas informações sejam prontamente corrigidas. Proponho que os textos sejam referenciados de forma completa e correta. Além disso, recomendo expressar um sincero pedido de perdão por esta violação histórica da memória dos ancestrais e descendentes afro-brasileiros da comunidade itaunense, que são bens culturais inestimáveis, tangíveis e intangíveis, transmitidos através de gerações. Neste sentido, invoco as palavras do artista Belchior e peço permissão para incorporar duas palavras em sua canção “Roupa Velha Colorida”: No presente a mente, o corpo é diferente, e o passado de “insultos e acusações” é uma roupa que não nos serve mais... precisamos rejuvenescer!” Só assim, acredito que terei tranquilidade para retornar meus estudos e pesquisas, mas mantendo-me vigilante.  

Charles Aquino, 

em 6 de março 2024

Texto da prefeitura de Itaúna disponível no site

Conjunto Arquitetônico do Morro do Rosário

Por volta de 1750, Manuel Pinto Madureira, um dos primeiros moradores do antigo Arraial, solicitou ao Arcebispado de Mariana a construção da Capela de Sant’ana.

A Capela foi construída no topo do Morro do Rosário, onde já existia um oratório. Suas obras foram finalizadas após quase 15 anos. Ao lado da Capela, foi construído o primeiro cemitério da cidade. No dia 7 de abril de 1841, o templo foi transformado em Paróquia pela Lei nº 209. A Capela de Sant’ana se transformou na Matriz de Sant’ana.

Em 1840, os escravizados construíram no Centro a Capela da Senhora do Rosário. Por influência dos frades barbôneos, os grandes fazendeiros da época resolveram trocar a Matriz de lugar com a Capela construída pelos negros. Não fazia sentido os brancos subirem o extenso Morro enquanto os negros tinha uma Igreja por perto.

As igrejas foram trocadas. O problema é que os padres queriam manter as padroeiras. Sant’ana, dos portugueses, agora era dos negros. Senhora do Rosário, dos negros, virou padroeira dos brancos. Os negros não aceitaram. Toda noite, entravam na Matriz e roubavam a Imagem de Nossa Senhora do Rosário e levavam para a nova Capela, no alto do Morro. Sendo lenda ou não, fato é que essa história inspirou a festa mais tradicional da cidade: o Reinado.

Segundo a Associação das Sete Guardas, os ritos afro-brasileiros são comemorados em Itaúna há mais de 220 anos. Hoje, a Igreja abriga a devoção da santa e a grande festa do Reinado: importante manifestação cultural, que atrai visitantes e estudiosos, pela sua beleza cênica e ritualística.

O pequeno templo, berço de Itaúna, singela obra de colonizadores, com seu adro, hoje Praça Manoel Pinto Moreira; a Sede da Associação das Sete Guardas e o Cruzeiro, estão impregnados de reminiscências e vivências daqueles homens do passado e dos homens do presente que construíram e constroem a história do município. Seu tombamento vem de encontro aos anseios de toda a comunidade que a quer alçada a seu lugar de direito, como símbolo maior da cidade, “Patrimônio Cultural do Município de Itaúna”.

Disponível em: https://www.itauna.mg.gov.br/portal/secretarias-paginas/135/conjunto-arquitetonico-do-morro-do-rosario-/