O rio que fez Itaúna

O São João não é um rio comum. Itaúna nasceu da sua margem, cresceu pela força de sua água, industrializou-se à custa do seu curso, e ainda hoje deve ao rio a espinha dorsal de sua geografia e de sua memória. Onde há cidade, houve um rio primeiro.
Em seu leito de curvas e quedas, o São João modelou a história local antes mesmo que houvesse município. Foi pela água que os primeiros habitantes compreenderam o que era possível produzir, construir, resistir. O próprio nome de Itaúna, que em Tupi significa pedra negra, só ganhou sentido quando a presença humana percebeu o potencial do rio e das pedras que lhe davam passagem. O curso do São João, partindo de Bomfim, serpenteando o solo mineiro, descendo até Pitangui, era mais do que um fluxo de água. Era um traçado de destino.
A expressão “água é vida” ecoa em cada dobra desse percurso. O São João foi usina antes da usina, foi energia antes da eletricidade. Movia engenhos, lavava o minério, fazia girar a primeira indústria, alimentava o gado e sustentava o plantio. Nas cheias, impunha respeito. Nas vazantes, desafiava a sobrevivência. Os habitantes da margem aprenderam cedo a negociar com o ritmo do rio. Quando João de Cerqueira Lima idealizou a primeira usina hidrelétrica de Itaúna, foi no Cachão que encontrou a força necessária. Naquele trecho, o rio tinha uma vazão de 12m³ por segundo, o que permitia gerar energia suficiente para as fábricas que Itaúna começava a erguer. Era o século XX ainda cedo, mas o espírito da modernidade já pulsava na correnteza.
A cidade se moveu ao redor dessa fonte vital. As decisões sobre urbanização, planta industrial, e mesmo a disposição das vias públicas, passaram a obedecer ao traçado do São João. A Barragem do Benfica, construída como resposta às grandes enchentes, se tornou um marco na tentativa de domar o fluxo que tantas vezes invadiu o perímetro urbano. A enchente de 1926 permanece na memória como um divisor de águas, literalmente. As águas do São João ultrapassaram o leito da estrada de ferro, inundaram a parte baixa da cidade, transformaram ruas em canais intransponíveis. Após essa tragédia, a urbanização da parte baixa de Itaúna foi repensada. O plano da Câmara Municipal previa a construção de uma barragem de contenção, que só se concretizou anos depois.
O São João não era só recurso. Era também identidade. Os nomes que o cercavam confirmavam isso. Havia o Ribeirão dos Campos, o Calambau, o Córrego Fundo, o Soldado, os Batatas. Todos afluentes e rios menores que compunham o sistema hídrico do município. Cada um com sua história, sua utilidade, seu papel na vida econômica e social da cidade. Os peixes, a agricultura, a pecuária e a piscicultura dependiam dessa configuração natural.
O curso do rio também definiu a industrialização. Itaúna, Pará de Minas e Pitangui ergueram suas fábricas de tecidos, suas caldeiras e suas turbinas às margens do São João. O português João Lima comprou terras exatamente ali para instalar sua hidrelétrica. Desejava construir uma fábrica, produzir energia, consolidar um projeto familiar e empresarial. Sua disputa com a Santanense, travada nos embates jurídicos e econômicos, também tinha água no centro do debate. O domínio das margens era questão de poder.
Mesmo antes das usinas, o São João já movia outras indústrias. A moagem de milho, a serraria, a lavoura, os primeiros processos de lavagem do minério de ferro nos ribeirões das Lavrinhas e do Jacuba. Tudo passava pela força da correnteza. A água lavava, movimentava, gerava valor.
Em seu nome, o São João carrega um batismo simbólico. O primeiro registro histórico dessa denominação aparece em uma carta de sesmaria de 1739. O nome derivava da paragem conhecida como “caminho do Rio São João”, um trecho de passagem entre a Serra do Itatiawy e o então chamado Mato Grosso. Foi a partir dali que o adjutante João da Silva Ferraz, em 1746, recebeu sesmaria para se estabelecer. No documento, já se lia o nome São João como referência geográfica e mítica. É desse registro, assim como de tantos outros documentos cartoriais e registros de posse, que Guaracy de Castro Nogueira extraiu a tessitura documental que hoje nos permite acompanhar a cronologia precisa desse batismo, a origem das sesmarias e o encadeamento dos primeiros domínios da região.
Batizado de rio, batizado de fé. Foi pelo São João que a cidade nasceu. E permanece sendo ele o fio que ancora nossa história ao território. Porque, onde há água, há permanência. E onde há permanência, há memória.