Não há mais lugar para punitivismo psicológico e emocional disfarçados de procedimentos das escolas infantis
Esta semana um imenso carimbo na agenda escolar de minha filha me empurrou preocupado para uma série de leituras sobre Educação. Aos sete anos, ela (juntamente conosco, os pais) havia esquecido de enviar um livro de geografia para a aula. Durante o almoço, nossa filha despretensiosamente nos disse que estava com medo de voltar a se esquecer de levar algo para o colégio, pois, caso isso viesse a ocorrer, “ela seria mandada para a o serviço de atendimento do aluno”. Ela externou-se intimidada moralmente de uma maneira significativamente maior do que nós pais jamais havíamos visto nos sete aninhos de vida dela. E para nossa surpresa - pesadamente intimidada pela figura docente e pelo ambiente escolar que nós acreditamos: deveriam inspirar acolhimento, amparo emocional e fortalecimento de uma educanda infantil, em fase de criação de sua autoestima acadêmica e reconhecimento de seu lugar no mundo. Acredito que minha filha deve sim ser orientada e disciplinada sobre o que são os procedimentos escolares corretos. Mas não por meio de uma lógica punitivista, revestida de ameaça, intimidação, sutil agressão emocional e moral. Este tipo de terrorismo, perante uma criança não combina com as mais modernas linhas teóricas da pedagogia
Algumas décadas atrás, se um pai fosse à escola de sua criança questionar o motivo de uma sessão de palmatória, a coordenação pedagógica iria responder que aquilo era um procedimento padrão, amplamente praticado. O mesmo ocorria há menos tempo com as correções feitas em caneta vermelha, na recente década de 90. Hoje nem se discute o desserviço que essas atitudes promoviam ao trucidar o aconchego emocional, a autoconfiança e competência relacional docente indispensáveis para a evolução cognitiva e pedagógica das crianças.
A pesquisadora portuguesa Maria Teresa Estrela afirma que “decerto que o domínio dos conteúdos, das formas da sua transmissão e dos diversos procedimentos escolares que compõem a vida do estudante são alicerces da competência docente, mas alicerces frágeis se não forem acompanhados da trave-mestra que é a competência relacional do professor com o estudante”. Uma relação de professora com alunos que seja construída à base de medo em errar, proveniente de terrorismo, ameaça punitivista e intimidação não será um solo fértil para o desabrochar de uma mente estudantil autoconfiante, curiosa e disposta a entender que o equívoco, “pisar na bola”, é apenas parte da bela estrada do conhecimento e do amadurecimento pessoal. A professora hoje simboliza todo o universo de conhecimento que nossos filhos ainda desbravarão no futuro acadêmico deles.
Cláudio Marques da Silva Neto é doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP), diretor escolar e estudioso em direitos humanos, formação docente, cultura escolar, indisciplina, violência e gênero. Ele nos relembra que “uma certeza que já está razoavelmente assentada no debate acerca da indisciplina escolar é que a lógica do disciplinamento não institui a ordem no ambiente escolar. Não é punindo severamente e com sanções desvinculadas do erro ou da falta do aluno que se produz o comportamento esperado, uma vez que a disciplina não é condição para a aprendizagem, é produto dela”. A pedagogia brasileira adotou um modelo de ação, fundamentado no uso da ameaça e da punição, como prática educativa. É comum, na maioria das salas de aula, ouvir o professor ameaçando seus alunos ou, de alguma forma, os intimidando - temos que encarar que esse é um dos motivos da evasão escolar. É muito comum, também, ver as mães e pais ameaçando seus filhos, quando esperam deles um comportamento adequado. O escritor e pedagogo Roberto Dimas ainda nos aponta mais fundo com suas reflexões. Segundo ele, de uns anos para cá, a Neurociência vem mostrando como nosso cérebro funciona como ele responde a uma série de fatores. Já está claro, por exemplo, que ameaças, intimidações, impedem a produção de neurotransmissores ligados à aprendizagem significativa. Na realidade, produzem aqueles neurotransmissores que bloqueiam, paralisam, confundem a mente do indivíduo. É fundamental, em lugar disso, a vivência dos valores universais positivos. Tudo sob uma prática pedagógica, não mais fundamentada na ameaça, na intimidação – que não produz resultados satisfatórios – mas, numa prática que forma o caráter do jovem, para uma vida saudável, construtiva. A vivência de valores ativa o circuito de recompensas no cérebro, produzindo os neurotransmissores necessários para a aprendizagem significativa. Quando isso acontece, o indivíduo tende a repetir o feito interiorizando uma forma de pensar e de agir, construtiva, que será adotada na vida social, na vida pública. A sociedade, a vida pública adquire, automaticamente, formas de pensar e de agir, aprendidas no campo pedagógico, educacional, período de formação do caráter dos jovens. Essa forma de pensar e agir prescrita e interiorizada, durante o processo educacional – hoje, por vezes, violenta punitiva - se torna automática na vida social e pública, sem maiores reflexões, pelo conjunto da sociedade. Está aí a origem do aumento da violência e da corrupção, em nossa sociedade.
A principal função do educador, segundo Áurea Maria Guimarães – professora associada da UniCamp, é mostrar aos alunos que os conhecimentos adquiridos na escola podem ser usados como ferramentas que os ajudem a se emancipar e a construir novas relações com o mundo que os cercam. Um enorme carimbo pintado na agenda escolar, cuja tinta lista três opções de circunstâncias indesejadas, de onde a docente faz um x sobre uma: “não fez tarefa de casa”, “não fez atividade em sala”, “não trouxe material”, seria o suficiente para se tornar terrorismo para um adulto ou um jovem adolescente ou pensar isso é um exagero? Não sei responder isso, mas sei responder se o alvo for uma criança em início de vida escolar, pois testemunhei. Uma escola que faz pensar sem intimidação e com fortalecimento da autoestima do estudante possibilita às crianças e aos jovens pensarem por eles mesmos, trocarem ideias com seus colegas, amigos e familiares, antes de decidirem qual posição deveriam ter diante de questões complexas que exigem aprofundamento, reflexão, atividade autônoma do pensamento.