O menino que nos visita às escondidas

O menino que nos visita às escondidas

Há uma desordem silenciosa que se instala nas cidades por volta de dezembro. Não me refiro à correria das compras, ao congestionamento dos shoppings, nem às luzes piscantes que rivalizam com os vaga-lumes e vencem por excesso. Refiro-me a um tipo específico de inquietação: aquela que nos invade mesmo sem convite, como se uma visita ilustre houvesse atravessado a soleira sem bater. É o Natal chegando. E, como sempre, chega como uma surpresa esperada.

Não importa quantos calendários tenham sido riscados, quantas vezes o rádio tenha tocado sinos ou quantas mensagens de boas festas já tenham sido despachadas por grupos de WhatsApp. O Natal não chega por causa do calendário. Ele chega por causa do Menino. E o Menino, esse Menino, é diferente de qualquer outro.

Chega sem pedir, como quem já conhece a casa. E mesmo sem levantar a voz, muda a decoração da alma. Há sempre algo de escandalosamente improvável nesse dia: um Deus de tamanho para além dos palácios e grande o suficiente para ser abrigado no curral. Um Rei que dispensa exércitos, mas atrai pastores. Um Salvador que não começa no trono, mas no feno.

Se o mundo prestasse mais atenção, ficaria desconcertado. O que se celebra no Natal é, afinal, uma ruptura. Uma irrupção. Um escândalo em miniatura, embrulhado em panos, colocado sobre palha. Um acontecimento que, embora embalado por canções suaves, tem mais força do que qualquer revolução.

Por isso é tão estranho que algumas pessoas ainda o confundam com um evento decorativo. O Natal não é a época das luzes. É a época em que a Luz ousou pisar na escuridão. E se não compreendermos isso, talvez estejamos apenas pendurando enfeites em uma ausência.

Não há metáfora mais poderosa do que a do Menino sem casa sendo comemorado em todas as casas. Nenhum paradoxo é mais verdadeiro do que o de um recém-nascido desabrigado tornando-se símbolo universal de acolhimento. O Natal é a única festa em que o protagonista está ausente da maioria dos discursos e presentes. E, ainda assim, continua sendo o único capaz de justificar a existência da própria festa.

Chesterton dizia que o mundo moderno se orgulha de ter perdido a fé, mas ainda quer guardar os feriados. É isso que transforma o Natal em caricatura. Conservam-se as embalagens, mas esvazia-se o conteúdo. Trocamos o presépio por caixas brilhantes e embrulhamos nossa própria indiferença com papel metalizado.

Entretanto, o Menino continua vindo. Vem à revelia das manchetes e das campanhas publicitárias. Vem quando menos esperamos, como uma ternura que quebra o cinismo. Vem quando o olhar de uma criança nos desarma, quando um velho reencontra o filho, quando uma carta esquecida é lida de novo. Vem quando nos lembramos de que perdão é mais urgente do que razão.

Há quem tente esconder esse Menino, como se fosse inconveniente misturar religião com festas. O problema não é misturar. O problema é esquecer que a festa só existe por causa d’Ele. E não porque Ele nasceu de maneira épica. É justamente porque nasceu de forma comum.

O Natal nos obriga a rever as escalas. Numa época que valoriza o alto desempenho e o brilho exterior, somos confrontados com um Menino frágil, calado e pobre. Um Menino que não diz nada: anuncia tudo. Que não exige nada, mas oferece tudo.

Gustavo Corção, que sabia beber da mesma fonte de encantamento de Chesterton, dizia que o Natal é uma ternura que dói. Porque nos lembra de quem deveríamos ser. Porque reacende em nós uma saudade que não sabíamos que tínhamos. Porque interrompe, por instantes, o ruído do mundo e nos obriga a escutar uma canção antiga, cantada por anjos em língua estranha.

E talvez por isso o Natal incomode tanto. Em vez de nos oferecer um espetáculo, oferece-nos um espelho. E não um espelho qualquer: um espelho de palha, onde vemos refletidos o que somos, o que perdemos e o que ainda podemos recuperar.

O Menino não se impõe. Também não passa despercebido. Não fala alto, mas cala multidões. Ele vem como quem visita sem avisar, como quem conhece cada canto da casa e da alma. Ele vem porque é Dezembro. Ele vem porque ainda há esperança. Ele vem porque, mesmo esquecidos d’Ele, continuamos sendo esperados.

E essa espera – ah, essa espera – é talvez a única coisa verdadeiramente eterna no tempo dos homens.

Por Rafael Corradi Nogueira