A usina dos dois sonhos

João de Cerqueira Lima saiu da Santanense com ferida aberta. Passara anos disputando espaços internos, colecionando divergências, enfrentando resistências. Ao sair, manteve o propósito de realizar aquilo que já acalentava em silêncio: erguer sua própria fábrica e gerar sua própria energia. Comprou, com recursos próprios, um terreno de 25 mil metros quadrados às margens do São João. Queria montar ali uma usina hidrelétrica, erguer uma fábrica de tecidos e alcançar, sem favores, o sonho interrompido.

A escritura foi lavrada no 11 de setembro de 1905. O preço foi de 4:500$000, pagos ao doutor Afonso Cassiano Dornas dos Santos e sua esposa. A transação foi feita na residência de João Lima, com testemunhas e registro no Cartório do 2º Ofício. No papel, ele era o único comprador. Na alma, parecia estar acompanhado de uma missão.

O curioso é que, à mesma altura, Dr. Augusto Gonçalves de Sousa também começava a articular outro projeto. Como presidente da Câmara Municipal de Sant’Ana e liderança política consolidada, sonhava fundar uma nova companhia. Queria iluminar a cidade, organizar uma nova fábrica, trazer progresso à margem direita do rio.

No início de 1911, Dr. Augusto reuniu um grupo de 11 pessoas para levantar capital e planejar a Companhia Industrial Itaunense. A proposta era clara. A empresa teria capital de 240:000$000, dividido em 1.200 ações de 200$000 cada. Os objetivos estavam definidos com clareza. Fundar uma nova fábrica de tecidos e explorar a eletricidade como força para o desenvolvimento local. A luz se tornaria parte do plano, não apenas como insumo, mas como ideia. Todos esses detalhes, que dão textura concreta à história e a minha pesquisa para redigir este texto, estão ancorados na base documental compilada minuciosamente por Guaracy de Castro Nogueira, cujos registros cartoriais e análises jurídicas sustentam o entendimento do que de fato se negociou, do que se moveu entre nomes, terras e intenções.

A adesão foi rápida. Entre os subscritores estavam nomes já conhecidos da história itaunense. João Lima com 350 ações. Dr. Augusto com outras 350. Antônio Pereira de Matos com 125. João de Cerqueira Lima com 130. Outros nomes surgem. Josias Nogueira Machado. Acácio Beato Coelho. Washington Alves da Cunha. Antigos acionistas da Santanense. Cada um trouxe recursos e, com eles, uma pequena parcela de convicção.

Em 13 de março de 1911, a compra dos terrenos foi formalizada. Francisco Lopes da Silva e Ana Lucinda da Silva venderam parte da antiga Fazenda do Retiro, que abrangia águas que desciam para o São João. Mais adiante, João Lima adquiriu, em nome da nova companhia, outras partes da Fazenda da Cachoeira, inclusive áreas com queda d’água suficiente para mover a turbina que desejava. Ao todo, as aquisições ultrapassaram 23:450$000, em pagamentos formalizados com clareza cartorial.

Foi nesse ponto que a Santanense reagiu. Ao tomar ciência dos planos da nova companhia, reivindicou para si os direitos sobre as mesmas águas. Argumentava que parte dos terrenos da Fazenda da Cachoeira pertencia historicamente aos seus fundadores e que a nova empresa não poderia capturar a força hídrica sem causar prejuízo. A divergência logo se tornou litígio. As duas companhias começaram a operar como antagonistas. Uma desejava preservar o passado. A outra tentava erguer um novo futuro.

A disputa pelas águas não foi apenas técnica. Tocou símbolos. João Lima chegou a erguer uma capela no local, consagrando o empreendimento à Virgem Maria. Declarou publicamente sua devoção. Comprometeu-se a prestar contas aos sócios e assinou de próprio punho, em livro, a intenção de fundar a nova companhia com base na fé e no trabalho. Em seu voto manuscrito, pedia inspiração à santa imagem para jamais se desviar dos deveres para com os empregados da futura empresa.

Ao final daquele mesmo ano, os primeiros diretores da Companhia Industrial Itaunense estavam eleitos. Dr. Augusto ocupava a presidência. João Cerqueira Lima exercia a gerência. Antônio de Matos assumia a secretaria. Os cargos estavam definidos. Os livros registrados. Os estatutos redigidos. A nova fábrica ainda não existia fisicamente, mas já havia nascido como ideia, como documento, como esperança.

Era o início da Itaunense. Ela não surgia como contraponto direto à Santanense. Surgia como um capítulo à parte. Duas fábricas. Dois projetos. Dois sonhos. Os dois filhos da mesma cidade, cada qual querendo acender sua própria luz.

Por Rafael Corradi Nogueira