Santanense: quando a disputa se instala entre irmãos

Santanense: quando a disputa se instala entre irmãos

Nos primórdios da Santanense, o que se tecia não era apenas algodão, mas destino. As máquinas giravam, sim, mas os embates mais delicados aconteciam nas assembleias, nos balanços contestados, nas pequenas atas que escondem grandes fraturas. E se é verdade que todo empreendimento carrega em si tensões inevitáveis, na história da fábrica de Sant’Ana do São João Acima, elas se deram, muitas vezes, entre os próprios fundadores. Irmãos, primos, parentes por consanguinidade e afinidade; gente unida por sobrenome e separada por visão de mundo.

Foi esse o caso das disputas entre Manoelzinho, o primeiro grande timoneiro da firma, e João de Cerqueira Lima, cunhado de confiança que ascendeu a diretor e ganhou prestígio entre os acionistas. Manoelzinho, já então desgastado pelas exigências da tesouraria e pelas lutas anteriores na fundação da empresa, via com crescente desconforto a influência de João Lima sobre o conselho. Divergências sobre dividendos, aluguéis e até sobre a condução administrativa da fábrica foram se acumulando em silêncio. Até que explodiram em votos e votos contrários. 

A assembleia de 30 de março de 1896 é emblemática: nela, a leitura do balanço e do relatório de diretoria gerou desconforto visível. Manoelzinho, àquela altura, já havia perdido parte significativa de seu capital político. Na eleição para presidente e tesoureiro, viu seu nome rejeitado por maioria, com 158 votos dados a Dr. Augusto e 123 ao seu. No ano seguinte, em 29 de março de 1897, as contas foram aprovadas, mas novas eleições confirmaram a mudança de rumos. João Lima, homem de perfil técnico, já era gerente contratado. E a transição de comando se consolidava.

O falecimento de Manoel José de Sousa Moreira, em dezembro de 1898, intensificou o vácuo simbólico. Foi nesse contexto que, na assembleia de 25 de março de 1899, José Gonçalves de Sousa Moreira, neto do fundador, foi eleito presidente, com 85 votos, enquanto Manoelzinho, então tesoureiro, recebeu apenas 55. A diretoria, agora rejuvenescida, era formada por José Gonçalves, Josias Nogueira Machado e João Gonçalves de Sousa – nomes que conduziram a companhia a um novo ciclo. 

As disputas, contudo, não cessaram. Em 21 de março de 1901, ocorreu uma das assembleias mais decisivas de toda a história da firma. O embate girava em torno de cinco emendas estatutárias, entre elas, a que determinava o limite para remuneração de diretores e gerentes. Das 245 votações, 143 foram contrárias às emendas e apenas 102 favoráveis, o que gerou protestos veementes por parte de Dr. Augusto, que exigiu a suspensão dos trabalhos e se recusou a assinar a ata. João Lima, então à frente da gerência, encaminhou uma carta à assembleia rejeitando qualquer remuneração não votada de forma transparente, e reafirmando sua recusa a receber importâncias não merecidas, inclusive quando oferecidas pela Conferência de São Vicente de Paula.

Com o passar dos anos, mesmo as divergências tentaram encontrar acomodação institucional. Em 16 de março de 1904, uma nova reforma estatutária transferiu para a diretoria o poder de eleger, por escrutínio secreto, o novo presidente. Em 18 de março, o novo comando foi formado: Manoelzinho ficou fora. E os nomes de José Gonçalves, Josias Nogueira Machado e João Gonçalves de Sousa passaram a dirigir a empresa sob nova lógica de colegiado.

Talvez nenhum símbolo represente melhor esse momento do que a já mencionada carta de João Lima. Nela, ele se recusa a aceitar qualquer valor sob alegação de justiça superior: “julgo que com a firmeza de quem muito amou, com a justiça de quem cada um se esforça para aquele fim desejado”. A recusa de receber o que lhe era devido foi menos um gesto econômico que um ato de separação definitiva. Um homem justo não cobra o que sente que foi injustamente negado. E um projeto que se quer duradouro precisa compreender esse tipo de gesto. 

No fundo, o que estava em disputa era a própria alma da companhia. Seria a Santanense uma firma de família ou uma sociedade empresarial aberta à meritocracia? Seria um bastião de nomes ilustres ou uma engrenagem moderna movida a competência? As respostas não vieram de imediato. Levariam anos, talvez décadas, para amadurecer. Mas o conflito, silencioso e áspero, lançou luz sobre um traço profundo da história de Itaúna: a tensão constante entre tradição e inovação, entre o vínculo de sangue e o critério técnico, entre o passado que sustenta e o futuro que exige transformação.

Hoje, ao reler essas histórias pelas lentes da pesquisa incansável de Guaracy de Castro Nogueira, compreendemos que não se trata de escolher lados. Trata-se de compreender as forças que moldaram um dos empreendimentos mais longevos do interior mineiro. Forças humanas, demasiado humanas – e por isso mesmo inesquecíveis.