O espírito de Natal

O espírito de Natal


As pessoas hoje são muito curiosas em sua forma de falar sobre “o espírito” de alguma coisa. Há, por exemplo, uma espécie particular de pedante que sempre nos faz sermões sobre ter o espírito do verdadeiro cristianismo, separado de todos os nomes, liturgias e formas. Até onde consigo entender, ele quer dizer exatamente o oposto do que diz. Quer dizer que devemos continuar usando os nomes “cristão” e “cristianismo” para algo que não é um espírito cristão; algo que é uma espécie de combinação do otimismo sem fundamento de um ateu com o pacifismo de um hindu. Da mesma forma, lemos um bocado sobre o espírito do Natal no jornalismo ou no comércio, mas é na realidade uma inversão do mesmo tipo. Longe de preservar o essencial sem o que é externo, preserva o que é externo onde não pode haver o essencial. Significa tomar meras substâncias materiais, como luzinhas e árvores de natal, e espalhá-las em shopping centers cosmopolitas, ou ao redor de restaurantes impessoais cheios de gente cansada, pouco caridosa e cínica, ou em qualquer outro lugar em que é mais improvável que o verdadeiro espírito do Natal esteja. Mas há também outra forma pela qual a complexidade comercial devora o coração da coisa, enquanto preserva intacta sua casca pintada. É o sistema excessivamente elaborado de dependência das compras e vendas, e por isso da agitação; e o abandono de fato das coisas novas que poderiam ser feitas pelo velho Natal. Eis aqui mais uma reflexão de G.K. Chesterton, para a qual eu sirvo de um mero, mas orgulhoso transmissor.

Normalmente, se alguma coisa hoje em dia fosse normal, pareceria óbvio dizer que o Natal é uma festa de família. A festa tem a ver com uma família feliz, porque é consagrada à Sagrada Família. Mas é perfeitamente verdade que muitas pessoas veem o fato sem sentir a razão de forma especial.

A festa do Natal é doméstica; muitos lutam para subir em aviões e filas. Dias antes, a população inteira parece ter se tornado sem-teto. Casas demais, mas uma insuperável falta de moradias. A festa da família transforma em vagabundos tanto os ricos como os pobres. Estão tão espalhados pelo estonteante labirinto de nosso tráfego e nosso comércio. Quero dizer o contrário da irreverência quando digo que seu único ponto de semelhança com a família natalina arquetípica é que não há lugar para eles na estalagem.

Ora, o Natal apoia-se num belo e intencional paradoxo: o de que o nascimento de um sem-teto deve ser celebrado em todos os lares. Já é bastante ruim que o nascimento de um sem-teto, celebrado junto à lareira e no altar, seja às vezes sincronizado com a morte de sem-tetos em encostas atingidas pelo período das chuvas ou pelas nevascas do Hemisfério Norte. Precisamos de uma reforma do Natal moderno.

O Natal poderia ser criativo. Mesmo aqueles que mais o elogiam dizem-nos que seu principal valor é preservar antigos costumes ou brincadeiras antiquadas. Mas não são tanto coisas velhas, mas coisas novas que um Natal de verdade poderia criar. As crianças têm muita sorte de serem deixadas sozinhas na sala de brinquedos para inventarem não só jogos inteiros, mas dramas inteiros e histórias próprias; inventam línguas secretas; criam famílias imaginárias; dirigem laboriosamente revistas de família. Esta é a espécie de espírito criativo de que precisamos no mundo moderno, tanto porque o desejamos como porque não o temos. Se o Natal pudesse tornar-se mais doméstico, ao invés de menos, acredito que haveria um grande aumento no verdadeiro espírito do Natal; o espírito do Menino-Deus. Mas ao permitir-nos este sonho, devemos uma vez mais inverter a convenção atual na forma de um paradoxo.

É verdade que, em certo sentido, o Natal é a época em que todas as portas deveriam estar abertas. Mas eu gostaria de fechar as portas no Natal, ou pelo menos logo antes do Natal; e então o mundo verá o que somos capazes de fazer. Existe a sabedoria de fechar as portas, e descobrir que é só quando todas as portas estão fechadas que as melhores coisas são encontradas do lado de dentro. Se são protestantes, cuja religião baseia-se apenas na Bíblia, que seja de fato por uma vez uma Bíblia de família. Se são pagãos, que não aceitam nada exceto a agitação da festa, que seja pelo menos uma festa de família. As reclamações de críticos modernos sobre reuniões de família não se devem ao fato de que esse fogo místico foi deixado aceso, mas que se apagou. Sacodem-se brinquedos de Natal de forma incongruente perante tios gordos e pagãos que gostariam de estar vendo futebol. Mas isso não altera nem o fato de que estes poderiam tornar-se muito mais alegres e inteligentes se soubessem brincar com esse ambiente, nem o fato de que são chatíssimos quando falam de futebol. Sua chatice é apenas o último produto mortal do progresso mecânico do esporte organizado e profissional, nesse rígido mundo de rotina fora de casa. Quando eram crianças, atrás de portas fechadas dentro de casa, é provável que quase todos eles tivessem devaneios e dramas não escritos. Quão mais emocionante seria se o Tio Fulano, ao invés de descrever com detalhes todas as jogadas do lateral direito, dissesse francamente que havia estado numa viagem até o fim do mundo e acabara de capturar a grande serpente do mar. Essas coisas, projetadas desde dentro, estiveram em todos os espíritos humanos; e não é normal que sua inspiração seja tão completamente esmagada pelas coisas de fora. Que ninguém suponha nem por um momento que eu também estou entre os tiranos da Terra, que imporia meus próprios gostos, ou que forçaria todas as outras crianças a participar das minhas próprias brincadeiras. Não tenho nenhum desrespeito pelo futebol; é um jogo admirável.

Já o joguei; ou melhor, já brinquei de jogá-lo, o que é geralmente considerado o exato oposto. Por favor, que os peladeiros joguem futebol. Que joguem futebol dia após dia; que o joguem 364 dias, e noites também, com bolas mergulhadas em tinta fluorescente para serem procuradas no escuro. Mas que haja uma noite em que as coisas se iluminam a partir de dentro; e um dia em que os homens busquem tudo o que está enterrado em seu interior, e descubram onde ele realmente está escondido, por trás de portões trancados e janelas cobertas, e portas triplamente trancadas e barradas, o espírito da liberdade.

Por Rafael Corradi Nogueira