Inteligências quase artificiais

Inteligências  quase artificiais


Num artigo na Folha de SP, li a seguinte advertência: “A inteligência artificial não quer te destruir”. Concordei com aquilo. O temor de que o seu celular esteja conspirando com a TV para te dar um choque é exagerado. Máquinas não têm essa perspectiva, tão humana e competitiva, a respeito da convivência com entidades de natureza diferente da sua. Fogões e geladeiras passam décadas na mesma cozinha, sem sabotar-se. As máquinas não se preocupam com a vida dos outros e nem fofocam no escurinho digital sobre os hábitos do seu patrão. Tudo que querem é executar o seu trabalho com cada vez maior eficiência, assim como muitos de nós.

Desde que me entendo por gente, especula-se sobre o tempo em que as máquinas dominarão o mundo e absorverão o humano. Aliás, este flerte com elas vem de muito antes. No século XVII, Descartes já comparava o corpo humano com os relógios e o enaltecia por ter um sistema hidráulico sofisticado. 

Desde os primórdios da ficção científica, a possibilidade de construir um ser autônomo, seja feito de partes humanas ou de metal, tem sido um fetiche recorrente nos sonhos da humanidade, que vive querendo brincar de Deus. Frankenstein, por exemplo, era uma criatura artificial feita de partes humanas. A história foi escrita em 1818, por Mary Shelley. De lá pra cá, a ficção científica foi dominada quase inteiramente pelos homens: as mulheres tornaram-se cada vez mais práticas e objetivas.

O certo é que as novas tecnologias estão mudando a nossa maneira de ver o mundo. Mas às vezes nos afastam dele, como no caso dos que acreditam mais na mensagem de algum aplicativo do que na realidade à sua frente.  

Mais recentemente, com os algoritmos identificando o nosso gosto, oferecendo exatamente aquele produto que estávamos pensando em comprar, é grande a sensação de que alguma força oculta e cibernética está querendo dominar o mundo.

Essa preocupação, entretanto, é inútil: as máquinas já dominaram o mundo! 

Uma prova é o comportamento largamente difundido entre os estudantes de dar um google e assim responder questões sobre qualquer assunto, como se o mero acesso a informações fosse suficiente para produzir conhecimento. Nem é preciso pensar: apenas digitar. E nem carece ser um perguntador hábil: o Google supre as eventuais limitações de raciocínio e compensa a sua ignorância. Além disso decide que fatos apresentar e o que omitir: ficamos à mercê dos humores de um aparato digital.

Não falo que as máquinas já dominaram o mundo pensando em nerds vivendo on-line ou na rotina do corpo técnico da Apple, mas no simples impacto do celular nas nossas vidas.

Habilidades antes tidas como humanas vão sendo negligenciadas e algumas quase perdidas. Penso, particularmente, na capacidade de discernimento, ou seja, no uso da experiencia e do conhecimento pessoais, para avaliar determinadas situações.

Não precisamos mais especular, duvidar ou imaginar. Está tudo lá, no Google, assim como antes esteve nas bibliotecas, embora o esforço da busca e o encontro de dissidências, característico daqueles tempos, tivesse consequências positivas ainda reconhecidas. No mundo todo essas verdadeiras usinas de sabedoria continuam ativas, enquanto outras tantas, novas e espetaculares são criadas a cada ano. 

O Brasil, que se julga mais esperto, fechou mais de 800 bibliotecas públicas nos últimos 5 anos. Breve começaremos a queimá-las, pra liberar espaço para as cervejarias.

Volto a Descartes: Penso, logo existo. Dou um Google, logo existo? Você está de brincadeira.