Quando a vontade virou disputa

Quando a vontade virou disputa

Herdar uma obra é mais do que receber um bem: é compreender o espírito que a fundou — e permanecer fiel a ele. Quando Manoel Gonçalves de Sousa Moreira redigiu seu testamento, não deixou apenas cifras e propriedades. Deixou um código moral cuidadosamente organizado em cláusulas. Nele, dizia com todas as letras: a Casa de Caridade deveria ser administrada pela Câmara Municipal de Itaúna, e as ações da Companhia Tecidos Santanense seriam destinadas à manutenção perpétua da obra. Era um gesto de confiança pública, um pacto com a cidade, não com interesses.

Mas como quase tudo que é grande encontra resistência, o testamento — tão límpido quanto definitivo — acabou cercado por movimentos que tentaram reinterpretá-lo. É aqui que me amparo, com respeito e afinidade de sangue e ofício, na pesquisa minuciosa de Guaracy de Castro Nogueira. É dele o mapeamento sereno e rigoroso que me permite agora, com minha descrição dos eventos, redesenhar os contornos do que se passou. A Câmara, em 8 de setembro de 1920, decidiu transferir à própria Irmandade da Santa Casa a administração da instituição. Sob a justificativa de dar agilidade ao funcionamento, o gesto feriu o coração do texto deixado por Manoelzinho. O que estava escrito foi reinterpretado com outras intenções. O que era um “dever da cidade” tornou-se “atribuição de poucos”.

As atas, os decretos e os autos que se seguiram revelam um processo minucioso de apropriação do simbólico. Passou-se a agir como se a fundação tivesse sido um ato genérico, aberto a remanejamentos, e não o que de fato foi: um ato de fundação com cláusula pétrea. Em nome da eficiência, desrespeitou-se a essência. Como se alguém quisesse melhorar o desenho de uma ponte mudando o leito do rio. O que era herança pública foi sendo, sutilmente, apropriado por vozes privadas.

Dr. Augusto Gonçalves de Souza Moreira, então presidente da Câmara e sobrinho do fundador, tinha sobre os ombros uma decisão delicada. Homem de ciência, médico respeitado, político em pleno comando da cidade — teria sido a oportunidade de proteger, com a força do ofício, a vontade clara de seu tio. Mas a ata de 16 de setembro de 1920, aprovada pelo Conselho Deliberativo, revela outra inflexão: permitiu-se à Câmara transferir a administração à Irmandade antes mesmo de ela estar formalmente organizada. O testamento ainda estava em curso — mas o rumo já havia sido desviado.

O que se desenha ali não é apenas um episódio de disputa burocrática. É um instante em que a ética da continuidade foi submetida à pressa. E talvez mais grave: à tentativa de apagar, no futuro, o que no passado fora jurado. Não se encontrou nos arquivos da Casa nenhum documento posterior que reiterasse a vontade original do fundador. Nenhuma palavra escrita que projetasse o destino da obra conforme Manoelzinho a pensou.

Esse silêncio posterior é, por si, eloquente. Porque o silêncio que paira sobre uma omissão histórica não é o mesmo que aquele que protege um legado. Um denuncia; o outro conserva. E aqui, infelizmente, o que ficou foi a neblina. A Casa permaneceu — mas o vínculo entre a cidade e o testamento perdeu nitidez.

Por isso este capítulo se escreve não como acusação, mas como lembrança. Porque lembrar, neste caso, é restaurar — não os fatos apenas, mas o sentido que os une. É recolocar cada peça no seu lugar simbólico. É desempoeirar a clareza de uma vontade que foi solenemente registrada, mas sutilmente desviada. Manoelzinho não pediu favores. Deixou orientações. E essas, como as raízes de um velho jequitibá, não precisam de defesa: precisam de solo firme. Em Macondo, cidade central de “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel García Márquez, dizia-se que os homens se perdiam quando esqueciam o nome das coisas. Aqui, entre nós, esquecer o nome de Manoelzinho atrelado à Casa que fundou não seria apenas ingratidão — seria desfazer o pacto silencioso que nos ancora ao que fomos, para podermos continuar sendo.