Os três portugueses na passagem do Rio São João

A pesquisa documental de Guaracy de Castro Nogueira, a quem se deve o resgate minucioso de certidões, inventários e relatos, permite compreender como se deu a lenta sedimentação da vida comunitária, onde hoje é Itaúna. Quando três portugueses chegaram à clareira aberta pelo sargento-mor Gabriel da Silva Pereira, fixaram-se junto ao ponto de travessia dos que buscavam o rumo de Pitangui. Além dele, Tomás Teixeira e Francisco da Silva Pereira, companheiros e aparentados por vínculos e alianças, encontraram-se com um território ainda marcado pela presença indígena e pela convivência inevitável com a escravidão. Vieram sem mulheres brancas, e logo compreenderam que para consolidar suas vidas naquele sertão era preciso constituir família. Assim, aproximaram-se das índias e das escravas, formando os primeiros núcleos familiares permanentes na região.
O matrimônio, mais do que um ato civil ou religioso, representou ali um gesto de posse e de enraizamento. Em 12 de agosto de 1739, Gabriel e Tomás casaram-se na capela de São Francisco Xavier, na freguesia da Cachoeira do Campo, em cerimônia registrada nas certidões preservadas na Cúria Metropolitana de Mariana. O casamento foi o marco visível de uma vida que deixava de ser transitória para enraizar-se no solo mineiro.
Gabriel da Silva Pereira, natural de Barcelinhos, trouxe consigo a herança cultural do Douro e da devoção católica. Casou-se com Joana Joaquina do Amaral e, ao longo de quarenta anos, estabeleceu-se como referência na Fazenda do Ribeiro do Gama, administrando terras, plantando e colhendo, criando filhos e consolidando laços comunitários. Tomás Teixeira, oriundo de Lisboa, chegou a Sant’Ana do São João Acima com a firme intenção de fixar-se. Casou-se com Ana Maria Cardoso de Camargos, consolidando sua ligação à poderosa família Camargos, de Ouro Preto. Seu papel como patriarca, aliado à visão de empreendedor, marcou o início de uma linhagem que deixaria marcas na economia e na religiosidade locais.
As descendências destes pioneiros ligaram-se, por matrimônio, às famílias mais influentes de Minas: Alves de Carvalho, Fernandes Bragança, Cardoso de Camargos. Cada aliança foi uma estratégia silenciosa de expansão patrimonial e de fortalecimento político. Não se tratava apenas de dividir terras ou plantar roças, mas de moldar o destino de uma região. A religiosidade impregnou esses primeiros passos. Desde a chegada das esposas em 1739, a comunidade clamava por um oratório próprio. Em 1713, João Lopes de Camargos já havia demonstrado, em outras paragens, que a fé acompanhava a posse da terra. Na passagem do Rio São João, essa tradição se repetiu, com a edificação de um espaço sagrado que se tornaria referência para todos os moradores.
Dr. Guaracy de Castro Nogueira, ao examinar esses registros, sublinha que a história desses homens é inseparável do tecido social que teceram. A presença da Igreja, o entrelaçamento das famílias, a convivência com indígenas e escravizados formaram um mosaico complexo, no qual fé, economia e política eram inseparáveis.
A religiosidade dos Camargos expressou-se também na figura de seus descendentes, muitos deles padres, construtores de capelas e mantenedores do culto. As famílias ergueram oratórios e capelas particulares, onde as missas eram celebradas com a simplicidade própria do sertão, mas com o zelo e a devoção herdados da tradição portuguesa. Esse movimento ajudou a fixar não apenas a população, mas também o sentido de pertença a um lugar que, até então, era apenas rota de passagem.
A chegada desses três portugueses na passagem do Rio São João não é apenas um capítulo isolado do povoamento mineiro. É a narrativa de como homens e mulheres, vindos de mundos distantes, se entrelaçaram a esta terra e, ao fazê-lo, deram início a um ciclo de vida que ainda ecoa nos gestos e na memória de Itaúna. A conveniência corriqueira de um pouso, para descanso de deslocamentos no interior mineiro, se fez grande o bastante para conter séculos de história. A história de nossas barrancas.