O nome que passou a pesar

Nem sempre a herança é repouso. Às vezes, ela pesa. E quando não se sabe sustentá-la com a altura que exige, o que deveria ser continuidade vira distorção. Quando Dr. Augusto faleceu, em maio de 1924, o hospital que ajudara a consolidar entrava numa fase em que o testamento de Manoelzinho seria menos lembrado e mais reinterpretado. Passava-se, lentamente, da fidelidade institucional à força de arranjos e nomes.
Foi nesse cenário que ascendeu à provedoria seu sobrinho, Dr. Dario Gonçalves de Sousa. Filho do fundador, herdeiro moral e material, Dario assumiu a Casa com a autoridade de quem tinha prestígio, influência e, à sua maneira, projeto. Mas nem sempre o sangue garante a alma. Sua gestão foi marcada por avanços estruturais, aproximação com industriais, articulação política — e, ao mesmo tempo, por críticas públicas de concentração, autorreferência e, sobretudo, de afastamento da missão original do hospital.
É a esse período que se referem as atas, artigos e registros que Guaracy de Castro Nogueira colheu com a precisão de quem não apenas narra, mas interpreta a cidade como quem a habita por dentro. Nos cadernos que me chegaram às mãos, entre timbres oficiais e recortes de jornal, estão as vozes que divergiam do provedor: jornalistas como Piu, vereadores como Peri Tupinambás, e uma população que já não reconhecia com nitidez o espírito do fundador no rosto da instituição. Dizia-se que a Casa não tinha corpo de enfermagem adequado, nem banco de sangue, nem coesão administrativa. E que, por trás da aparente estrutura, faltava o essencial: a clareza de propósito.
O ponto de inflexão viria em 1955, quando a Câmara Municipal, diante do parecer jurídico elaborado por Peri Tupinambás e seus pares, deliberou que a Lei nº 127 de 1920 — aquela que transferia à Irmandade a administração da Casa — havia perdido sua eficácia. Em termos legais e simbólicos, isso era mais que uma nota de rodapé: era uma tentativa de devolução da Casa ao seu eixo original. Reconheceu-se que a “Casa de Caridade Manoel Gonçalves de Sousa Moreira” era uma fundação, e não uma associação, como se quisera fazer parecer. E que, portanto, não poderia estar sob o regime político ou privado da cidade. A Casa não pertencia a uma linhagem, tampouco a uma facção: pertencia ao seu próprio sentido.
Mas como se sabe, nem toda correção histórica é suficiente para restaurar o tempo perdido. Quando o nome pesa, como passou a pesar, ele já não é apenas referência: é cobrança. E foi nesse momento que o hospital, antes símbolo de caridade, passou a ser, também, espelho de tensões. Porque o nome de Manoelzinho permanecia — mas sua vontade já começava a ser sussurrada em vez de proclamada.
Talvez seja por isso que este capítulo se escreva com mais inquietação do que homenagem. Porque há momentos em que lembrar não é louvar — é examinar. Como no conto de Jorge Luis Borges, um dos maiores autores do século XX, em que o espelho não reflete o rosto, mas aquilo que o rosto preferia não ver. A Casa continuava de pé, mas precisava, mais do que nunca, reencontrar o chão moral sobre o qual fora erguida. E esse chão — saibam todos — nunca foi outro senão o da caridade como fundamento, e não como ornamento.
Por Rafael Corradi Nogueira