Os que fincaram raízes

Os que fincaram raízes

Antes que houvesse município, já havia chão demarcado, nomes transmitidos por batismo e terras marcadas à enxada. Entre os que primeiro fincaram raízes no território que hoje conhecemos como Itaúna estavam os Gonçalves Cançado e os Sousa Moreira, famílias que vieram de Piedade dos Gerais e de Bonfim trazendo com elas não só pertences, mas um modo de vida. Essa história aparece com nitidez nos registros de terras de 1831 e no recenseamento de 1854, analisados e sistematizados com precisão na genealogia produzida por Guaracy de Castro Nogueira. Foi ali, no cruzamento entre documentos oficiais e memória oral, que se tornou possível reconstruir o mapa familiar de uma Itaúna ainda sem nome.

Os irmãos Manoel e Antônio Gonçalves Cançado chegaram jovens. Manoel aparece com vinte anos em 1831, dono de gado e terras. Antônio, com dezoito, já exercia a profissão de negociante. Ambos se estabeleceram em Sant’Ana, onde passaram a construir suas roças, fazer filhos, adquirir vizinhos e desafiar o isolamento das matas. Manoel casou-se com Maria Felizardina, filha de Maria Joaquina de Sant’Ana e do guarda-mor Antônio de Sousa Moreira. Foi por esse casamento que duas linhagens fundadoras se entrelaçaram, formando o núcleo central da família Gonçalves de Sousa em Itaúna.

Na Fazenda da Cachoeira, onde hoje passa o eixo da zona rural que abastece a cidade, os Gonçalves Cançado possuíam mais de oitenta alqueires de terra, conforme atestam os inventários e partilhas. Outros lotes estavam na Fazenda dos Coelhos, na dos Garcias, na dos Campos e na do Córrego do Soldado. Em cada uma, havia trabalho braçal, presença de agregados, e registro de produções agrícolas e criatórias. Os documentos da época falam de roças de milho, criação de porcos, engenhos de cana e pequenas lavouras para subsistência. O que se plantava, comia-se. O que sobrava, vendia-se na estrada.

Entre os filhos desse tronco familiar está Antônio Gonçalves Bonfim, o primeiro a aparecer com clareza no “Registro de Terras” de 1855. Era já conhecido como homem respeitado, e sua presença se estende a mais de uma fazenda. Casado com Maria Joaquina de Sant’Ana, teve filhos que ampliaram os domínios da família e fortaleceram sua influência. Os inventários de seus bens indicam casas de morada, escravaria, ferramentas de lavoura e até certa participação na vida comercial do arraial.

O ramo Sousa Moreira, por sua vez, também teve origem no mesmo cruzamento de linhagens. O guarda-mor Antônio de Sousa Moreira, pai de Maria Joaquina, aparece nos registros como proprietário de sessenta e nove alqueires de terras, divididos entre a Fazenda da Gameleira, a do Córrego do Soldado e a dos Campos. Foi ele quem assegurou à sua descendência um patrimônio fixo, transmitido depois a Custódio, Joaquim, Antônia e outros nomes que ainda hoje sobrevivem na oralidade das famílias locais. Os documentos são exaustivos. Em 1851, a jovem Neusa Gonçalves de Sousa, filha de Maria Antunes Parreiras, redigiu o primeiro estudo genealógico da família, depois publicado nas “Efemérides Itaunenses”, por João Dornas Filho.

Esses dados, preservados com rigor por Guaracy de Castro Nogueira, revelam mais do que listas de nomes. Revelam um padrão de ocupação, de mobilidade, de aliança entre famílias que construíram a base agrária e social do município. As partilhas mostram, por exemplo, que filhos solteiros herdavam terras específicas. Mulheres recebiam frações que podiam ser convertidas em dotes. As casas de morada eram descritas com detalhes, inclusive seus utensílios e pertences.

No final do século XIX, os descendentes dessas famílias já ocupavam cargos públicos, atuavam como juízes de paz, serviam como procuradores e fundavam firmas comerciais. Nas imagens preservadas, rostos de Jofre, Alcides, Virgílio, Clarindo, Afonso e Waldemar Gonçalves de Sousa estampam uma genealogia que atravessou a república sem se apagar.

A história da cidade passa por essas casas de telhado baixo, por esses nomes de batismo repetidos de geração em geração. Antes da política, houve partilha. Antes do município, houve alqueires medidos com vara de pau e promessas feitas à sombra das árvores. Conhecer essa origem é honrar não o sangue, mas o gesto de permanecer. Como escreveu Rosa, “o correr da vida embrulha tudo… a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e afrouxa, sossega e depois desinquieta.” Entre um e outro movimento, ficaram essas raízes de chão vermelho e palavra empenhada, que ainda hoje sustentam o nome de Itaúna.

Por Rafael Corradi Nogueira