Black Friday da bariátrica Ou: o assédio dos médicos pela cirurgia que você não pediu
Mais uma consulta médica e mais uma abordagem parecida. Você já pensou em fazer cirurgia bariátrica? É a pergunta que eu escuto em diferentes consultórios médicos e, desta vez, nem houve a pergunta, houve logo a oferta da cirurgia, assim, sem mais nem menos, no meio de uma avaliação pré-cirúrgica para a correção de um desvio de septo. Ao apresentar os meus dados para o médico anestesista, peso e altura, foi logo calculado o meu IMC (Índice de Massa Corpórea usado pela Organização Mundial de Saúde para calcular o “peso ideal”), sendo que o meu corresponde a mais do que o exigido para se realizar as cirurgias bariátricas. Assim que fez a conta de dividir o meu peso pela altura, o médico já foi logo dizendo que, com esse IMC, a minha cirurgia seria aprovada facilmente no meu plano de saúde, ainda mais porque eu sofro de apneia - o real motivo pelo qual eu estava naquele consultório –, o que me daria status de prioridade.
A oferta foi feita de forma inesperada, confesso que demorei uns segundos para entender a mudança de assunto. O médico disse que, há alguns anos, era uma cirurgia complicada, mas que hoje ela é muito simples, existem dois modelos, o completo ou o parcial, e já foi logo recomendando um médico de confiança dele, já falando onde o médico atende, que é só eu ligar e fazer uma consulta para fazer avaliação. Um anúncio, como se fosse uma promoção, uma venda da Black Friday, duas cirurgias pelo preço de uma, talvez não no mesmo dia, mas assim, muito fácil, como ir na esquina e comprar uma roupa, como ir no supermercado e comprar um item que você está precisando. E não como se fosse uma cirurgia complexa, que muda completamente o funcionamento do seu corpo e que você vai ter que lidar com as consequências dela para o resto da sua vida.
A primeira vez que fui abordada para fazer a cirurgia bariátrica sem solicitação foi por uma médica que não é cirurgiã gastrointestinal, foi no consultório de uma ginecologista, há cerca de um ano e meio, quando eu fui colocar o DIU. A médica perguntou se eu já tinha tentado emagrecer outras vezes, eu disse que sim, tinha conseguido, mas tinha engordado, o clássico para a maioria das pessoas acima do peso. O que foi suficiente para que ela sentenciasse que eu deveria fazer a cirurgia bariátrica. “Por que você ainda não fez a cirurgia bariátrica? Vai resolver a sua vida, você vai emagrecer, reduzir os riscos de câncer, doenças cardiovasculares...”. E mais, ela disse que “não existe isso de gordinha saudável”, que os riscos de todas as doenças mais terríveis (listou algumas) vai continuar. Gente magra tem doenças terríveis também, pensei, e crianças e todo tipo de pessoa, basta estar vivo e ter uma genética desfavorável ou hábitos ruins.
É sabido que a gordura excessiva pode piorar alguns quadros. Mas os problemas de saúde que atualmente enfrento também afetam os magros. Incluindo aí a necessidade de fortalecer músculos, preservar articulações, aumentar atividade física e melhorar a alimentação, como a maioria na atual realidade, coisa que já estou fazendo e com sucesso, pois meus exames de sangue estão dentro dos padrões: glicose, colesterol, ácido úrico, vitaminas, hormônios, rins funcionando, pulmões, coração. Tudo bem para uma mulher de 39 anos, o que, inclusive, foi destacado como positivo pelo anestesista. Entretanto nada disso parece importar.
O mais curioso é que, como a médica otorrino com quem pretendo operar me alertou, de forma bem clara, o anestesista me detalhou os riscos da anestesia geral para quem tem apneia, como é recomendado o CTI para o pós-operatório, cuidado extra no momento da extubação, atenção à possível dificuldade para respirar normalmente e mais detalhes. Detalhes que me apavoram e que me impediram de realizar a correção do desvio de septo até aqui. Eu estava ali, com medo, “tomando coragem” para fazer um procedimento que eu realmente preciso, e foi oferecido outro, no qual eu correrei os mesmos riscos pós-cirúrgicos, porém “vale a pena”, “a cirurgia dura umas duas horas, por vídeo mesmo, você consegue perder uma grande porcentagem do seu peso”.
Em nenhum momento, os médicos que me ofereceram a cirurgia como se fosse um produto abordaram o lado psicológico de mutilar o meu sistema gastrointestinal e lidar com isso, eles só falaram na rapidez como eu conseguiria o procedimento no meu plano de saúde, que, por acaso, tem cobertura total, eu não precisaria pagar um centavo. Parece que isso é um atrativo. A impressão que eu tenho quando isso ocorre é que a pessoa gorda é uma oportunidade de lucrar, desconsiderando os problemas, traumas, consequências para o paciente.
Respeito aqueles que optaram por essa alternativa e aqueles que não tiveram opção a não ser fazer o procedimento, assim como conheço casos de sucesso e felicidade, mas sei que nem tudo são flores. A cirurgia não é simples, não é uma intervenção qualquer. Além da adaptação física, com reposição de nutrientes e vitaminas, existe o mental e o social, tudo que envolve a alimentação, que não é apenas um ato fisiológico, mas cultural. Inúmeros artigos e estudos têm apontado as consequências psicológicas da bariátrica, como a depressão, alcoolismo, transtorno de imagem e de personalidade, entre outros problemas debatidos atualmente em artigos científicos e reportagens por profissionais da psiquiatria e psicologia. Está cheio deles na internet, em sites respeitados e acadêmicos. Procure saber.
Quando saí do consultório do anestesista – excelente médico, a propósito, para o que é designado a fazer, impecável, assim como a ginecologista –, eu lembrei de uma consulta que fiz quando comecei a realizar exames no processo para uma possível cirurgia bariátrica, há cerca de 10 anos, impulsionada pela família, porém sem desejo algum de realizar o procedimento. Foi um cardiologista que me disse que meu coração estava apto, mas que eu deveria avaliar, me contou o que eu não sabia. Ele me apresentou todas as consequências físicas e psicológicas, e foi sincero. Saí de lá decidida a não fazer, posição que ainda mantenho. Muito diferente dos profissionais do plano de saúde, que, para mim, mais parecem vendedores, vendilhões do templo.