As Altas Rodas e a Anistia

O poder, confesso, sempre me fascinou. Mas não o que aparece na TV ou nas manchetes, cheio de discursos e pompa. Falo daquele poder que se arrasta pelos corredores, que se sussurra nas salas de reunião e que, no Brasil, ganhou um empurrãozinho histórico na redemocratização. Foi ali, em 1988, que muitos voltaram ao jogo. Aquela anistia fez um favor e tanto: transformou antigos donos de história em cidadãos elegíveis, e, de repente, eles estavam de volta, distribuindo cargos, alianças e convites para jantares onde o cardápio incluía política, negócios e algumas pitadas de influência. Você olha para o primeiro escalão nacional hoje, e percebe: grande parte desse pessoal chegou ali por conta desses vínculos, dessas amizades antigas que se perpetuam como herança, mas sem testamento formal.
Em Itaúna, a história não é diferente. Os Gonçalves, família que parecia ter a chave de tudo no início da cidade, e mais uma ou outra família, já eram lenda quando eu era menino. Política, comércio, pequenos favores e grandes contratos passavam pelas mãos deles. Hoje, você cruza com o legado dessas incubadoras de poder mais antigas atuando, quase como se o tempo tivesse apenas passado para fora, sem tocar o núcleo do poder. E no Brasil? Bem, lá fora a lógica é parecida, só que a escala é maior e a pompa é nacional: famílias, grupos políticos, empresários e militares que se entrelaçam, mantendo uma rede que não se vê, mas que define, de fato, quem manda e o que se decide. Já dizia o mineirinho sábio, com seu cigarro de palha: não existe revolução de verdade. Se tentarem chacoalhar, as melancias acabam se acomodando na caçamba do caminhão novamente, com o andar da estrada.
Reli C. Wright Mills esses dias. O cabra é observador. Em plena pós Segunda Guerra, com o bicho pegando entre comunas e ianques, ele estava descrevendo a mesma coisa, só que lá nos Estados Unidos. Chamava de “as altas rodas” aquele círculo de influências, como se fosse um clube secreto, mas sem senha, porque todos sabiam quem estava dentro. Nas altas rodas, você não precisa de cargo oficial; basta ter os laços certos, os contatos corretos, um histórico de encontros discretos e negócios fechados sob a luz branca da sala de reunião. Aqui no Brasil, é engraçado perceber que a anistia, de certa forma, reciclou muitos desses jogadores, permitindo que voltassem às mesas, mas agora com o rótulo de “legítimos”.
Depois, Mills fala de uma cidadezinha do interior chamada New Haven, mas podemos pensar em Itaúna: o poder aparece mais espalhado, democrático até. É nas reuniões de bairro, nas associações, nos pequenos partidos locais. As decisões se formam com coalizões temporárias, acordos improvisados, líderes que surgem e desaparecem com a mesma rapidez de uma festa de padroeiro. Mas mesmo aí, você percebe a influência da lideranças mais antigas, que continuam segurando as rédeas do jogo, só que de maneira mais sutil. No Brasil, acontece o mesmo: movimentos sociais e prefeituras conseguem ruído e atenção, mas a agenda principal já foi escrita há décadas por aqueles que conhecem as regras antes mesmo de o jogo começar.
Se você sentar com alguém para falar sobre isso, lembrando um pouco de outros teóricos políticos, como Mosca, Pareto e Michels, a conversa vai ser mais ou menos assim: todos concordam que o poder tende a se concentrar, que a organização mantém a elite unida, e que a circulação de lideranças é sempre mais lenta do que gostaríamos de admitir. Dahl poderia entrar na conversa e dizer: “Calma, há espaço para participação!”, mas Mills, que provavelmente estaria tomando um copo de uísque no canto do Bar do Toninho (o lugar mais politizado que tenho frequentado ultimamente), responderia: “Sim, mas enquanto você debate na mesa de bairro, alguém já definiu a agenda nacional”.
O que fica claro, e é quase cômico perceber, é que o poder tem dois tempos. Um público, feito de eleição, campanha, discursos e debates. Outro privado, invisível, onde se costuram alianças, se mantém famílias no topo e se garante que, não importa o barulho local, as decisões importantes sigam um roteiro bem discreto. E a anistia? Ah, ela entrou como um detalhe histórico curioso, um empurrão que permitiu que os personagens antigos voltassem à mesa, agora com uma aparência democrática, mas mantendo hábitos de sempre. E foi assim desde as primeiras vezes que a usaram na história antiga desse nosso Brasilzão. Ela ajudou?
Por Rafael Corradi Nogueira