Quando caridade virou fundamento

Talvez só mesmo a linguagem que fura o recolhimento dos claustros e o sopro das cordilheiras pudesse dar conta do que significou, para Itaúna, o nascimento da Casa de Caridade Manoel Gonçalves. O gesto fundador — mais próximo de um voto silencioso do que de um anúncio — não brotou de ambições públicas, mas de uma necessidade íntima e coletiva: a de cuidar dos nossos como quem reza. Fez-se hospital, sim, mas antes disso fez-se promessa encarnada, feita de alicerces morais, ofertas anônimas, mãos calejadas e esperanças sem nome. E se aqui ecoa certa solenidade lírica de minha parte, é porque ela se impõe. Brinco rapidamente com este estilo de escrita mais rebuscado, porque há obras que só se compreendem quando se escreve com o espírito dos que creram antes de ver — como Junqueira Freire, que via no silêncio uma forma de fé, e como Gonçalves Dias, que soube ouvir o canto da terra em meio ao rumor dos homens.
Há obras que nascem da urgência. Outras, da técnica. Mas há ainda aquelas raras, como o Hospital Manoel Gonçalves, que nascem do coração — e permanecem porque foram fundadas sobre o mais nobre dos sentimentos humanos: o da responsabilidade pelo outro. Esta é a história de uma dessas instituições que, ao longo de gerações, transformou-se em espelho da alma itaunense.
Aqui começo um novo trecho desta travessia memorial, valendo-me da admirável pesquisa conduzida por meu avô, Guaracy de Castro Nogueira. Permito-me dar forma atual a esse legado, vestindo de palavras minhas o que ele lavrou com precisão e honra. Afinal, aquilo que nasce para servir não deve jamais ser esquecido — apenas recontado, com renovado fôlego.
O século XIX se desdobrava sobre Minas quando a família Gonçalves de Sousa, já consolidada como uma das grandes estirpes de Bonfim, voltou o olhar para além da terra e da lavoura. Manoel José Gonçalves de Sousa Moreira, o Manoelzinho, herdeiro dessa linhagem e esposo de Dona Cota, cresceu entre livros e valores. Aprendeu desde cedo que prosperar exigia vigor, mas civilizar exigia renúncia. Casou-se cedo, viveu discretamente, doou intensamente — como quem entendeu que o privilégio da estabilidade só se justifica quando partilhado com os que tremem.
A herança familiar era sólida: política, econômica, cristã. Mas com Manoelzinho e Dona Cota, essa herança encontrou destino. O compromisso com o outro, que já habitava os corredores da Casa Moreira & Filhos, transbordou a vida privada e tocou a cidade. Foi ele quem percebeu, em meio às dores do povo humilde, a urgência de uma instituição que não apenas curasse corpos, mas sustentasse dignidades. Não o fez por tribuna. Não o fez por glória. Fez — e isso basta. Como Valjean, personagem de Victor Hugo, que carregava nos ombros a força de um erro redimido pelo bem, Manoelzinho construiu a própria redenção pública sem jamais tê-la prometido: servindo.
Diz-se — e nunca foi desmentido — que o casal, mesmo sem filhos, adotou Itaúna como descendência moral. Doaram terras, mobilizaram lideranças, arregimentaram fiéis, contaram com médicos e comerciantes. Em 1919, Manoelzinho articulou, junto a figuras respeitadas como o Dr. João Moreira, o Dr. Lúcio Gonçalves, Joaquim Nogueira Machado e outros nomes ilustres da cidade, a fundação formal da Casa de Caridade Manoel Gonçalves. A escritura de constituição, redigida com esmero e assinada no cartório local, estabelecia não apenas um hospital, mas um compromisso público com os mais vulneráveis. Nos primeiros anos, os atendimentos eram realizados em salas adaptadas, com leitos improvisados e equipamentos simples — mas a dignidade, essa, era completa. As senhoras da sociedade costuravam lençóis e preparavam refeições para os internados; os médicos se revezavam em plantões voluntários; os comerciantes locais garantiam o abastecimento de remédios e mantimentos. Um hospital nasceu assim: mais do que edificado, foi cultivado. E a Casa Moreira & Filhos, símbolo de sucesso e decência, passou a sustentar parte significativa da manutenção da obra — como quem entende que o lucro, quando não respira responsabilidade, empobrece.
Manoelzinho partiu em 1920, aos 63 anos. Dona Cota o acompanharia em 1954, aos 85. Mas o que deixaram não se dissolve no tempo. Vive. Em cada ala do hospital, nas mãos que medem febres, nas orações silenciosas feitas por acompanhantes aflitos. O hospital cresceu, modernizou-se, tornou-se referência — e mesmo assim, jamais perdeu o que de mais precioso recebeu: o espírito de quem o fundou para servir e não para ser lembrado.
Haverá quem se recorde daquela cena final de um velho romance, ou de um grande filme, em que o benfeitor, cercado de gratidão, ainda se pergunta se poderia ter feito mais. Com Manoelzinho, talvez o roteiro tenha sido outro: ele não perguntou — apenas continuou fazendo. E partiu como quem sabia que deixou o essencial em boas mãos. O resto seria semente.
Este é o primeiro capítulo de uma nova série sobre a história de nossa Casa de Caridade. Mas é também um gesto de gratidão pública. Porque contar a história do Hospital Manoel Gonçalves é mais que exaltar uma instituição. É lembrar que houve um tempo — e pode haver de novo — em que amar a cidade era uma forma de permanecer nela. Mesmo depois de partir.