Itaúna ousou ser Cidade Educativa

O ano era 1973. Minas Gerais vivia um tempo de experimentações políticas e educacionais, marcado pelo desejo de expandir horizontes para além da rotina escolar tradicional. Nossa Itaúna, pequena cidade do centro-oeste mineiro, foi chamada a participar de uma experiência inédita, cujo nome tinha algo de utopia e de promessa: Cidade Educativa. O relato de Guaracy de Castro Nogueira permite observar esse episódio da história municipal, quando professores, autoridades e a própria população se lançaram em um projeto de alcance internacional.
O ponto de partida foi um encontro promovido pela Unesco, em Paris, no início da década de 1970. Sob a liderança de Edgar Faure e de uma comissão internacional, surgia a ideia de repensar a educação em escala global. O lema era claro: “Aprender a ser”. Tratava-se de propor que a aprendizagem não se restringisse à sala de aula, mas se tornasse experiência permanente, capaz de integrar cultura, ciência e cidadania. O movimento tinha raízes em inquietações que atravessavam o mundo após a década de 1960, em meio a protestos estudantis, guerras e crises sociais. A Unesco buscava respostas para além do improviso e da instabilidade.
Minas Gerais abraçou a iniciativa. O secretário de Educação, Ângelo Corrêa Viana, sonhava transformar o estado em referência. O desafio lançado era selecionar municípios que pudessem ser laboratórios de uma nova pedagogia social, que envolvesse comunidade, famílias, igrejas, associações e empresas. O objetivo era simples e ousado: tornar a cidade inteira uma escola.
Itaúna se apresentou. Professores, líderes comunitários e jovens foram mobilizados. Criou-se um jornal especial, “Nós Somos Cidade Educativa”, em formato tabloide, com fotografias, artigos e reportagens que mostravam a vitalidade da cidade. Havia algo de entusiasmo contagiante nesse movimento: cada escola, cada associação cultural, cada grupo esportivo era chamado a demonstrar como poderia colaborar. Não se tratava de tarefa burocrática, mas de uma convocação cívica.
A comunidade respondeu. Reuniões, passeatas, manifestações em praças e auditórios revelaram a dimensão popular do projeto. Multidões gritavam o lema “Queremos ser Cidade Educativa”, em um dos momentos mais intensos de mobilização democrática da história de Itaúna. O engajamento não se limitava ao discurso; transformava-se em produção concreta de ideias e propostas. Professores elaboravam planos pedagógicos, artistas se ofereciam para oficinas, médicos e profissionais liberais pensavam em formas de aproximar ciência e saúde da rotina escolar.
O movimento ganhou projeção nacional. Em fevereiro de 1975, uma comissão julgadora veio a Itaúna para avaliar os esforços da cidade. O clima era de festa. Jornais locais e rádios clamavam apoio. Houve recepção apoteótica, com presença de autoridades, desfiles, bandas de música e faixas que expressavam o orgulho cívico da população. Era como se a cidade inteira tivesse se erguido para mostrar ao mundo sua capacidade de se reinventar.
A visita da comissão foi acompanhada de outras iniciativas simbólicas. Houve peregrinações a instituições de caridade, como o Orfanato São Vicente de Paulo, onde crianças receberam a delegação com cantos e apresentações. Houve também um momento emblemático no Colégio Sant’Ana, em que professores e alunos demonstraram, com disciplina e entusiasmo, a seriedade com que assumiam o desafio.
Itaúna foi uma das dezenove cidades selecionadas em Minas Gerais para prosseguir na experiência. O reconhecimento coroava o esforço coletivo. A lista incluía municípios de diferentes perfis, mas a vitória de Itaúna tinha sabor especial porque resultava de intensa mobilização popular. A cidade havia mostrado não apenas organização administrativa, mas também vitalidade cultural e confiança em sua própria força comunitária.
O projeto Cidade Educativa tinha um horizonte amplo. Pretendia-se que cada cidade-piloto fosse capaz de demonstrar como a educação permanente poderia promover desenvolvimento social e econômico, ao mesmo tempo em que consolidava valores de cidadania. Havia indicadores claros: alfabetização, participação política, integração cultural, capacidade de inovação tecnológica. Em Itaúna, a experiência traduziu-se em projetos de extensão, atividades culturais e novas formas de pensar a escola como centro de vida comunitária.
O tempo mostrou que muitas das promessas ficaram no campo das intenções, limitadas por mudanças de governo e por dificuldades estruturais. Ainda assim, o movimento deixou marcas profundas. Revelou uma Itaúna confiante, criativa, capaz de se colocar em sintonia com debates internacionais sobre o futuro da educação.
Hoje, ao revisitar esse episódio, percebe-se que Cidade Educativa foi mais do que um programa oficial. Representou um momento em que a comunidade inteira ousou sonhar junto, acreditando que educação não é apenas transmissão de conteúdos, mas construção de uma vida coletiva mais rica, justa e participativa.
O relato de Guaracy de Castro Nogueira conserva esse frescor. Ao narrar a expectativa, as reuniões, o jornal improvisado, a ansiedade pela visita da comissão e o orgulho de ver Itaúna entre as cidades escolhidas, ele nos entrega não apenas fatos, mas a memória de um tempo em que a educação foi pensada como destino comum. E isso permanece como lição.
A história de Itaúna, nesse capítulo, é também a história de um Brasil que buscava se reinventar pela educação. Um Brasil que acreditava ser possível transformar cidades em escolas vivas. A utopia pode não ter se cumprido em toda sua extensão, mas o sonho lançado naquele tempo continua a ecoar como desafio atual: aprender a ser, aprender a viver, aprender em comunidade.
Por Rafael Corradi Nogueira