Causus - Dr. Oriosvaldo

Causus - Dr. Oriosvaldo


Em meados dos anos sessenta, já com doze anos e cursando o segundo ano ginasial na Escola Normal, ele começou a ter dificuldades para anotar os exercícios que os professores escreviam no quadro, mesmo sentando na segunda fila das carteiras da sala de aula. Com a vista embaçada, esticava o pescoço daqui e dali e, com frequência, inquiria os professores sobre os escritos no quadro negro. Preocupada, a direção do educandário relatou o fato aos pais, que o levaram ao hospital do Manoelzinho para ser examinado por um especialista no assunto. O diagnóstico provocou uma grande tristeza na família: o Oriosvaldinho, filho caçula de uma tradicional família itaunense, era portador de uma grave e progressiva doença que o levaria à cegueira total em poucos anos. Aos quinze anos, já totalmente cego, passou a estudar no Instituto São Rafael, em Belo Horizonte, escola especializada em pessoas com problema de visão. Com o apoio da família, mesmo cego, levava uma vida normal, frequentando bares e restaurantes, passando as férias nas praias de Guarapari junto com os familiares e, principalmente, estudando muito, pois se tornou um especialista na linguagem Braile. Cursou a Faculdade de Direito da UFMG e se destacou como Advogado em Belo Horizonte e na região Centro Oeste de Minas, mas a sua grande paixão era a culinária. Fez diversos cursos no Senac e participava de uma confraria de amigos cozinheiros. Com a perda da visão, desenvolveu uma grande habilidade para perceber e identificar pratos, dos mais simples aos mais sofisticados, pelo seu aguçado olfato. Boa pinta, solteirão e mulherengo, era um assíduo frequentador da Boate New Sagitários, em Belo Horizonte, onde era recebido de braços abertos pelas garotas de programa, que com frequência o acompanhavam nos altos jantares em restaurantes sofisticados da capital. Era abrir um novo restaurante que lá estava o Dr. Oriosvaldo, exibindo para a sua bela acompanhante, frente a surpresos maîtres e garçons, as suas habilidades para identificar os pratos oferecidos no cardápio pelo estabelecimento comercial somente pelo olfato. Recebido com um cordial boa noite pela direção das casas e conduzido pelo braço a uma das mesas pela sua acompanhante, de imediato o identificavam como um deficiente visual, e quase sempre proporcionavam-lhe uma abordagem diferenciada pelo maître ou pelo garçom, que só entregavam o cardápio à sua acompanhante. Após as praxes normais de atendimento, chegavam ao cardápio e o detalhamento do menu oferecido. Só nessa hora é que o Dr. Oriosvaldo se manifestava: “Vocês têm uma colher de pau na cozinha?”, indagava. Com a confirmação, ele solicitava para o surpreso garçom que, ao invés de informar o prato oferecido com todas as suas iguarias, simplesmente lhe trouxesse a colher de pau umedecida na comida oferecida para ele efetuar ou não o pedido. Num belo dia, soube, através de amigos, da inauguração de um majestoso restaurante em um dos bairros elegantes de Belo Horizonte e, de imediato, fez uma reserva para duas pessoas. Numa quinta-feira, bem no início da noite, chegou acompanhado de uma linda morena ao novo restaurante que, devido ao horário, estava ainda com poucos clientes. Ao ser atendido pelo jovem garçom, indagou: “Vocês têm algum prato pronto para servir de imediato?”. Diante da confirmação, complementou para o surpreso garçom: “Por favor, vá até a cozinha e umedeça uma colher de pau na comida que já está pronta e a traga à mesa para que eu aprove o pedido”. Rapidamente o jovem garçom, ainda um pouco confuso com aquela solicitação tão inusitada, pediu ao cozinheiro chefe que atendesse a solicitação do cliente. 

Em poucos minutos, a colher de pau, postada em uma bandeja de prata, foi trazida à mesa do Dr. Oriosvaldo. Com o jovem garçom ao seu lado e com o auxílio da sua linda acompanhante, pegou a colher de pau pelo cabo e a levou próximo ao nariz. Após dar uma longa cheirada, exclamou sorridente: “Filé à milanesa com ervilhas e batatas coradas em azeite extravirgem Pecora Nero, produzido na fazenda Serra dos Tapes no Distrito de Canguçu, no Rio Grande do Sul. Ótimo prato. Por favor, refeição para duas pessoas”. Após o jantar, o desconfiado garçom procurou o chefe de cozinha, que confirmou tintim por tintim os ingredientes do jantar saboreado pelo atrevido deficiente visual. Na semana seguinte, no mesmo horário e na mesma mesa, lá estava o Dr. Oriosvaldo com uma nova acompanhante, tão bela como a do primeiro jantar, solicitando ao jovem garçom a colher de pau umedecida no prato que estivesse pronto. Com a colher de pau sobre a mesa, ele a levou novamente próximo ao nariz e, após dar duas longas cheiradas, exclamou: “Feijoada com feijão preto da cidade de Prudentópolis, do Estado do Paraná, com 70% das carnes de focinho de porco da raça Duroc, uma das iguarias servidas por pouquíssimos restaurantes neste país. Adoro este prato. Por favor, refeição para duas pessoas”. Indignado pelo atrevimento daquele cliente exibicionista, o garçom, após a confirmação do chefe de cozinha, exclamou para os seus botões: “Vai ter troco, ele que se atreva a voltar aqui novamente”. Ainda não haviam passado cinco dias, quando o jovem garçom, enquanto trabalhava durante o almoço, viu o pedido de reserva para o Dr. Oriosvaldo para o jantar daquela noite. “Hoje aquele sabidão me paga”, e com a colher de pau em um dos bolsos, rumou para casa a fim de tirar um cochilo, tomar um bom banho e voltar para enfrentar o sabidão da colher de pau. No mesmo horário e na mesma mesa, lá estava o Dr. Oriosvaldo, como sempre, acompanhado de uma linda morena, sendo atendido pelo jovem garçom. Após os cumprimentos de praxe, lá vai o garçom, agora, todo sorridente, rumo à cozinha para buscar a colher de pau de acordo com as exigências do cliente. Como o restaurante ainda estava vazio, chamou outros dois garçons que já conheciam o Dr. Oriosvaldo e confidenciou: “Antes de vir para o restaurante eu pedi à Filó, minha mulher, que passasse esta colher de pau nas suas partes íntimas até no fundo e a coloquei toda ensopadinha neste saquinho de plástico. Vou levá-la para aquele sabidão cheirar e ver se descobre qual é o prato que será servido esta noite e gostaria que vocês me acompanhassem só pra ver a cara dele. Cês topam?”. Acompanhado dos dois garçons e portando a colher de pau em uma bandeja de prata, o jovem garçom, num sorriso contido, caminhou em direção do deficiente visual e colocou a bandeja sobre a mesa. Auxiliado pela bela acompanhante, o Dr. Oriosvaldo levou a colher na altura do nariz e deu uma cheirada. Franziu a testa, e deu uma nova cheirada frente ao silencioso ambiente, só quebrado pelo leve fundo musical. Um breve sorriso já se esboçava no rosto dos três funcionários do restaurante, quando foram contidos pelo vozeirão do Dr. Oriosvaldo, após cheirar pela terceira vez a velha colher de pau: “Uai, a Filomena tá trabalhando neste restaurante?”...

Sérgio Tarefa