O tempo dos Gonçalves — quando se forjava o futuro de Itaúna

Por Rafael Corradi Nogueira

O tempo dos Gonçalves —  quando se forjava o futuro de Itaúna

Há períodos da história em que as forças de uma sociedade se condensam em nomes de família. Não se trata de reduzi-la a genealogia — seria simplista demais. Mas de reconhecer que, em certos ciclos formadores, a linha do tempo e a árvore genealógica se entrelaçam de tal modo que o que se escreve nos cartórios se desenha também no perfil da terra, nos negócios, na política e na cultura.

Assim foi, entre os séculos XVIII e XIX, com o que a tradição histórica de Itaúna e Sant’Ana passou a chamar de Gonçalvismo.

O termo nasceu popularmente, mas não por acaso. E designava o peso social, econômico e político que a grande família Gonçalves de Souza — em seu tronco vindo de Bonfim, radicado depois em Sant’Ana e finalmente projetado em Itaúna — exerceu sobre a formação daquela sociedade nascente.

Foi com a chegada, entre 1720 e 1850, dos primeiros desbravadores dos sertões que essa história começou a se desenhar. Portugueses que abriram picadas e fundaram povoados em terras de Pitangui, sob comando de figuras como o sargento-mor Gabriel da Silva Pereira. No que viria a ser Itaúna, destacaram-se as famílias Camargos, Gonçalves Cançado, Campos, Herculano Lopes, Fonseca, entre outras.

Mas é no ramo dos cinco irmãos Gonçalves de Souza Moreira, filhos de Antônio José de Souza Moreira e Maria Sabina do Nascimento, vindos da Fazenda Seio de Abraão, que a história adquire um de seus traços mais marcantes.

Entre 1830 e 1836, esses irmãos — Francisco, Manoel José, Joaquim, Vicente e José — casaram-se com as cinco filhas de Manoel Gonçalves Cançado e Tereza Maria de Jesus, da Fazenda Gameleira de Onça de Pitangui. Era o entrelaçamento perfeito de dois troncos fundadores, como bem descreve Guaracy de Castro Nogueira, cuja pesquisa minuciosa ilumina esse período formativo com rara riqueza documental.

Foi um tempo de construção — e de fé. Os versos que atravessam os registros desse tempo falam de um cotidiano rude e austero. Era um mundo em que a vida se erguia a partir da terra e do gado. O monjolo era a primeira indústria rudimentar dos Santanenses – naturalidade de quem pertencia a Sant’Ana de São João Acima, nome de Itaúna àquela época. O ritmo da roça marcava o compasso das famílias. Não havia luz elétrica. A capela era o centro moral da comunidade — e a missa em latim, um elo entre o sagrado e o profano.

A economia girava em torno do gado — o pasto engordava os bois, e as sinhas engordavam os homens, como dizia a máxima popular. Aos poucos, o arraiado se fazia cidade.

O Gonçalvismo virou força econômica e política. É no final do século XIX que o Gonçalvismo atinge sua expressão mais visível — não apenas como elite agrária, mas como força modernizadora. Com o acúmulo de terras e capital, e a aliança matrimonial bem tecida, os Gonçalves de Souza começam a liderar o processo de industrialização e de organização cívica da nascente Itaúna.

O MARCO DESSA VIRADA FOI A CONSTITUIÇÃO, EM 1891, DA COMPANHIA TECIDOS SANTANENSES. Sob a liderança do Tenente-Coronel Manoel José de Sousa Moreira e de seu filho Manoel Gonçalves de Sousa (Manoelzinho), a companhia foi criada com um capital inicial de 600 contos de réis, subscrito por 58 acionistas.

Os principais acionistas incluíam nomes como: Ten. Cel. Manoel José de Sousa Moreira, Dr. José Gonçalves de Sousa (advogado e articulador político), Dr. Augusto Gonçalves de Sousa Moreira (médico e liderança cívica), Antônio Pereira de Mattos (representante comercial).

A empresa visava à fabricação de tecidos de algodão — brancos e de cores —, bem como serrarias de madeira para construção. Um empreendimento arrojado para os padrões da época, que trouxe iluminação elétrica e novas formas de produção para Itaúna.

Entre 1891 e 1894, a companhia conheceu uma sequência de diretorias que espelham a própria transição de um patriarcado rural para uma elite empresarial e republicana: Manoel José de Sousa Moreira — por um mês e vinte e três dias; Dr. José Gonçalves de Sousa — por dois meses e vinte e seis dias; Manoel Gonçalves de Sousa Moreira (Manoelzinho) — por um ano e treze dias.

Essas mudanças refletiam também as tensões internas e o jogo político da nova república. O próprio Dr. Augusto Gonçalves de Sousa Moreira, advogado e médico formado em 1883, foi peça central nessas articulações — presidindo clubes republicanos e participando ativamente do Partido Republicano Mineiro.

Como bem sintetiza Guaracy de Castro Nogueira, o Gonçalvismo soube adaptar-se: da elite agrária de matrizes familiares, evoluiu para o comando de estruturas empresariais, urbanas e institucionais.

A história do Gonçalvismo não é apenas a história de um clã, mas de uma maneira de conduzir os destinos da cidade. Um pragmatismo que, mesmo reconhecendo as alianças de sangue, soube transitar pelas modernizações do tempo.

Assim foi até a liderança de figuras como Dr. Augusto Gonçalves de Sousa Moreira, que faleceu em 1924, já no limiar de um novo século — quando o Gonçalvismo, consolidado, passava a compartilhar sua influência com novos agentes sociais.

Começamos esta travessia não por saudade, mas por compreensão e responsabilidade em entender como o Gonçalvismo criou instituições e práticas que ainda ecoam na formação cívica das instituições modulares de Itaúna. Revisitar essa herança é chave para melhor interpretar e atuar no espírito público da nossa cidade atual.