“Devagar com o andor, que o santo é de barro!”

Sou professor da Rede Pública Municipal, e também da Rede Privada de ensino, e como professor, conhecedor de meu público, e por respeitá-lo, é que me senti na obrigação de manifestar. Sei que meu posicionamento pode não agradar a muitos, mas coloco-me disposto a ouvir. Mas discordar respeitosamente é próprio dos regimes democráticos. Chegou ao meu conhecimento a tramitação de um projeto de lei de número 45, de 2025, assinado por três vereadores do município, onde propõem “o uso da leitura bíblica como ferramenta paradidática em escolas públicas e privadas do Município de Itaúna, MG”. Não declinarei os nomes dos referidos vereadores em respeito a eles, até porque os conheço, e sei que suas intenções podem ser boas, mas a proposta não é cabível.
Nada contra a leitura da bíblia, seja em qual lugar seja, mas uso dos textos bíblicos – apesar de sua riqueza histórica e cultural – como “ferramenta paradidática em escola públicas e privadas” aí ultrapassa os limites do uso didático e pedagógico e pode se transformar em um mecanismo de propagação de uma visão religiosa, ou mesmo de instrumento de exclusão e de menosprezo para crianças e adolescentes que serão excluídas do processo pedagógico e educacional.
Pelo que sabemos o Estado é laico, e o Brasil não é constituído somente de cristãos. Residem em nossos municípios pessoas que não tem no cristianismo sua profissão de fé, então querer propor a leitura bíblica nas escolas é uma falta de respeito para com o público que não é cristão. Portanto o Estado deve garantir que todos tenham liberdade de manifestar suas crenças e não deve interferir nesta questão. Não cabe a ele propor nenhum tipo de orientação que beneficie determinado grupo religioso. E no caso aqui analisado, mesmo que nenhum aluno seja obrigado a participar das atividades prevista nesta lei, como está descrito no artigo 2º da proposta, é por si mesmo uma atitude de exclusão de uma minoria. Além disso, a utilização de fragmentos de um determinado artigo da constituição e não de sua totalidade como fundamentação teórica fere o princípio constitucional. O inciso VI, do artigo 5º da Constituição Federal diz claramente “VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”. Não caberia aqui dizer que ao propor a leitura bíblica nas escolas, não estaria violando a liberdade de manifestação religiosas dos grupos que não são cristãos? Não estaria abrindo a possibilidade de transformar as escolas em locais de culto? E o que fazer com os alunos que não se identificam com o cristianismo, serão excluídas do processo pedagógico?
Além disso, vale ressaltar que a própria Constituição Federal já é muito clara quanto ao estabelecimento dos conteúdos a serem trabalhados na rede pública e privada de ensino, e no tocante ao ensino religioso, diz o Art. 210. “Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais.” E em seu parágrafo primeiro diz: “§ 1º O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental.” Por este motivo a aprovação desta lei passa a conflitar com o princípio facultativo da matrícula no ensino religioso, uma vez que está propondo a utilização de um texto bíblico que é a base de um determinado grupo ou segmento religioso em meio a tantos outros.
Mas caberia aqui algumas questões não menos importantes: qual versão bíblica será utilizada, visto que temos inúmeras denominações cristãs com bíblias diferentes? E o que será ofertado para as crianças e adolescentes ou estudantes que não professam determinada orientação religiosa? Serão abertos também às religiões de matriz africana, ou indígena, ou mesmo oriental e islâmicas em utilizarem de seus ritos, leitura, textos sagrados dentro das unidades escolares públicas e privadas? Os vereadores que estão propondo essa “inovação” conversaram com os pais dos alunos que se identificam com religiões não cristãs? Conhecem a realidade escolar da cidade e garantem que não haverá doutrinação religiosa nas unidades escolares?
Não nego que as histórias bíblicas podem ajudar a refletir sobre valores que transcendem nossas crenças religiosas, mas utilizá-las como “ferramenta paradidática” é uma maneira de dizer que tais valores presentes nas histórias bíblicas devem ser acolhidos e ensinados como “verdades” em nossas escolas, e que os alunos de outras denominações religiosas serão privados destas “verdades” e que as “verdades” de suas crenças não serão consideradas, nem respeitadas.
Por este motivo, prudência e respeito seriam bons princípios! Respeito aos textos sagrados. Respeito às crenças dos outros! Respeito ao direito de inclusão apregoado pela constituição nacional! Respeito ao princípio da liberdade de crença e consciência conforme a integralidade de todo o inciso VI, do art. 5º da constituição federal, que deve garantir a todos os mesmos direitos de se manifestarem! E, finalmente, respeito a autonomia pedagógica escolar!
E quanto à prudência, utilizarei de um dito popular muito útil neste momento: “devagar com o andor, que o santo é de barro”!