A conveniência individualista pisando sobre criança indefesa

A conveniência individualista pisando sobre criança indefesa


Ao ensejo do pronunciamento do STF sobre o aborto, trago para o querido leitor um texto oportuno que redigi em junho do ano passado.

Meu irmão Bernardo, hoje com 37 anos, comandante aviador, pai de uma família linda e uma das poucas pessoas que conheço ser unanimidade querida por quem convive com ele, nasceu com 28 semanas de gestação, ou seja: pouco mais de seis meses dentro da barriga de minha mãe. Em junho do ano passado, acompanhei chocado a notícia de uma gestação de sete meses interrompida por meio de um remédio que causou infarto no feto. Realizou-se um aborto, em vez de um parto. O que mais assusta: tudo isso ocorreu com a aprovação da justiça brasileira e de uma parte da opinião pública. O caso remeteu-me a épocas da humanidade em que mortes humanas eram vistas com naturalidade por quem frequentava o coliseu romano ou por quem se valia da escravidão africana. O mundo parece ter retrocedido a uma selvageria medieval.

Que fique claro: faço coro às vozes de solidariedade à dificuldade da mãe do feto, que tem apenas 11 anos. Mas nada que justifique matar um bebê inocente. Se houvesse risco à vida da mãe, comprovado, e fosse necessário um aborto para que a mãe sobrevivesse – então a situação seria completamente diferente e a legítima defesa da própria vida justificaria o procedimento perante Deus e perante os homens. No entanto, a gravidez já estava em fase final e mesmo que ela optasse por realizar o parto imediatamente, em vez do aborto – a medicina sugere que o tratamento hospitalar intensivo seria capaz de garantir a sobrevivência do recém-nascido (que já contava com voluntários para adotá-lo). Para contextualizar ainda melhor, o deputado Diego Garcia, do Paraná, contou que essa gravidez da menina de 11 anos foi fruto do relacionamento dela com um adolescente de 13 anos – filho do padrasto. De acordo com o parlamentar, ambos moravam na mesma casa e mantinham um relacionamento amoroso, de conhecimento da mãe dela e do pai do menino. Diego Garcia ainda complementa, com anotações que valem a pena serem replicadas aqui. Ele explica: com base na lei “Lei de Romeu e Julieta”, adolescente que faz sexo com menor de 14 anos não comete ato infracional equiparado a estupro de vulnerável. Por não se caracterizar como “estupro”, o aborto não tem amparo legal, ou seja, não poderia acontecer.

Defender o valor da Vida junto a meus irmãos católicos seria fácil. Mas o fácil não é suficiente, portanto, busquei humildemente entender a visão de um ateu não-crente. O festejado escritor, filósofo, semiólogo, linguista e bibliófilo italiano de fama internacional Humberto Eco se encaixa nesta categoria e nos oferece uma excelente reflexão em sua troca de cartas com o Cardeal Católico Carlo Maria Martini. Eco nos relembra que a bandeira da Vida, quando tremula, comove todos os espíritos – inclusive os de ateus que não acreditam em nenhuma instância sobrenatural. Afinal, ateus encontram na ideia de Vida, no sentimento de Vida, o único valor, a única fonte de uma Ética possível – já que eles não se amparam no juízo de Deus. A vida humana, assim, não se reconhece somente onde há a aparência de alma intelectiva. É consenso que existe um processo gestacional, cujo resultado é inegavelmente um milagre chamado Vida. Na conversa, Humberto Eco, pergunta a opinião de seu correspondente, oferecendo o respeito digno de quem muito conhecimento carrega, mas também a humildade inerente a toda essa cultura: a de quem muito interesse tem em aprender com os pontos de adversidade no pensamento do amigo católico.

O cardeal Martini começa sua resposta mostrando seu principal alvo: os pontos dos quais nascem incompreensões profundas, que se traduzem em conflitos no plano político e social. E segue tentando ajudar Eco a entender sobre o valor da vida humana física na concepção cristã: aquela que é a vida de uma pessoa chamada a participar da vida do próprio Deus. Para um cristão, o respeito da vida humana desde a primeira individuação não é um sentimento genérico (como se fosse algo proveniente de nossa “disposição pessoal” em reconhecer a vida ou uma “persuasão intelectual” a ser feita sobre outras pessoas), mas o encontro com uma responsabilidade precisa: a deste vivente humano concreto cuja dignidade não está confiada apenas a uma avaliação benevolente de cada um de nós ou a um impulso humanitário para proteger o feto, mas sim a um chamado divino. É algo que não é apenas “eu” ou “meu” ou “dentro de mim, dentro do meu corpo”, mas DIANTE de mim, perante Deus.

A conclusão do diálogo não poderia ter um nível diferente da altura de seus interlocutores. Existe uma esplêndida metáfora que diz laicamente o quanto há de comum, no âmago, entre católicos e leigos: a metáfora do rosto. De uma passagem de Ítalo Mancini, em “Tornino i Volti”: “O nosso mundo, para nele vivermos, amarmos e santificarmo-nos, não é dado por uma neutra teoria do ser, não é dado pelos acontecimentos da história ou pelos fenômenos da natureza, mas é dado pelo existir destes inauditos centros de alteridade que são os rostos, rostos a serem olhados, respeitados, acariciados”. Rostos como o do bebê que tristemente foi assassinado, em lugar de ter sido escoltado com vida para fora do ventre da mãe, em Santa Catarina, há poucos dias.