Um presépio itaunense

Um presépio itaunense


Como um cristal mágico, esquecido, empoeirado, mas pulsante, o Presépio de Natal do Umberto Salera emite uma luz persistente. 

E ela não vai desaparecer.

Na semana passada, um grupo se reuniu em torno desse assunto. 

Eram oito e eu, que então seria o nono. Mas nono, em italiano, é avô e esse lugar já estava ocupado. O nonno estava lá, em espírito e história: era o vovô Salera! 

E foram muitas histórias... imaginem aquele italianense subindo a Silva Jardim, em meados dos anos 60, de braços dados com o irmão caçula, Amedeo, e o sobrinho Antônio, que vieram visitá-lo, 45 anos depois que Umberto deixou a pequena Tramutola. Enxerguei o colete, o relógio de bolso e ele, cumprimentado por todos enquanto apresentava o irmão. 

É cena de filme bom. 

Sua mãe esperando a sua volta e ele já enraizado nessa terra que tem coração de pedra. Quase cem anos depois, sua cidade natal ainda guarda a placa da sua oficina de sapatos, com o lema: Volere é Podere (vontade é poder)... Mas nós não conseguimos guardar algo ainda mais nobre: o seu presépio, movido a amor e à água.

Tramutola, onde as águas são sagradas, fica na ponta da bota italiana e foi onde Umberto se inspirou para criar o presépio, ungindo com as águas do São João, a habilidade e a arte próprias dos italianos e que se fazem presentes até hoje nas ruas e no casario daquela cidadezinha encantadora. Ela fica entre as montanhas como a nossa Itaúna, que também já foi encantadora. De modo parecido, ambas cresceram de mãos dadas com a fé: foram os monges beneditinos que deram impulso a Tramutola, há mais de mil anos! 

Ao conceber o presépio, Umberto visitava a vida que tinha deixado pra trás, decidido, compartilhando conosco a sua saudade e as belezas da sua terra. Quando chegava o Natal, o presépio fazia a festa dos itaunenses. Os bonecos, movidos à água, apresentavam cenas sublimes, engraçadas, engenhosas, uma técnica primorosa, mais antiga que o Pipiripau, em BH. 

Um dia, o Dr. Guaracy de Castro Nogueira pediu que ele o doasse para a cidade. Enviou um emissário e ficou aguardando, ansioso pela resposta, como conta Maria Lucia Mendes, que estava presente.

Consta que Umberto nem pestanejou: cedeu de pronto. 

Por alguns anos, o presépio continuou maravilhando as crianças e os adultos de espírito elevado, mas infelizmente essa modalidade de adultos, os de espírito elevado, foi escasseando. Assim como a de diretores responsáveis cuidando do museu onde o presépio estava. Até que, um dia, ele foi vilipendiado.

Ao lembrar o presépio e o seu gratuito e insensato desmonte, levado a cabo apenas para que fosse instalado um bar no museu, mais um bar, numa cidade de tantos bares e que só tinha um museu, a minha indignação é inevitável. 

O atual secretário “de Cultura” é um músico que da arte só conhece a técnica e a cópia. Portanto a sua ignorância se explica, embora tenha consequências terríveis para a cidade. Mas é incompreensível que um professor de história e membro da Academia Itaunense de Letras tenha decidido obedecer a ordem estúpida do chefe presunçoso. Como se atreveu a fazer o que não estava preparado para fazer? Como se dispôs, sem ter formação adequada, a desmontar um bem histórico daquela complexidade e, ainda por cima, fazê-lo sem tomar os cuidados mínimos, sem sequer registrar o processo?  

É ofensivo à inteligência de qualquer um.

Iremos em busca da recomposição do presépio. O que estiver ao nosso alcance será feito. Todos os instrumentos de justiça disponíveis para combater atentados à sociedade, pois é disto que se trata, serão chamados a se pronunciar. 

Depois será a recuperação do bem, a restauração do lugar do Presépio Umberto Salera na cultura itaunense. Precisamos dizer às novas gerações: “Já fomos uma cidade de ideais elevados, de cidadãos comprometidos com o coletivo!”. 

Quem sabe assim começamos a fazer as pazes com o nosso passado, que guarda tantas e tão importantes realizações?

*Arquiteto, urbanista e professor