Os primeiros caminhos

Os primeiros caminhos

Não há história de Itaúna sem os olhos voltados para Bonfim. Antes que se erguessem as paredes da Capela de Sant’Ana, e que o nome Itaúna ganhasse contorno de município, havia o Sumidouro, o Ribeirão do Ouro, os descaminhos de Fernão Dias e os primeiros sinais de ocupação portuguesa em meio ao cerrado. Quem quiser compreender a raiz profunda dessa terra precisa primeiro ver onde a semente foi lançada, entre as trilhas abertas por homens como Borba Gato e Fernão Dias, cruzando Paraopeba, Santana, São João d’El Rei, em busca de ouro, mas também de chão.

Foi por ali que se desenhou o que viria a ser o mapa de Itaúna. O bandeirante Fernão Dias, subindo de São Paulo para os sertões das esmeraldas, atravessou o território que mais tarde receberia o nome de Bonfim. Os registros mostram que sua bandeira armou acampamento, fixou pouso e definiu um traço físico que depois se consolidaria como território. Aquelas trilhas abriram as primeiras passagens entre rios e morros, conectando paulistas, goianos e mineiros, e inserindo definitivamente o centro de Minas na lógica de exploração e povoamento da colônia.

Borba Gato, genro de Fernão Dias, também deixou suas marcas. Ao requerer em 1710 a confirmação de terras cultivadas há décadas, revelou um processo de ocupação já consolidado no Sumidouro, especialmente nas margens do Ribeirão do Ouro e da Fazenda das Bicas. Essa confirmação, assinada pelo governador da Província, indicava o início de um novo ciclo: a formalização de posses, o surgimento de fazendas com nome, cercas e herdeiros. É nesse contexto que se insere o trabalho minucioso de Guaracy de Castro Nogueira, cuja pesquisa documental recupera mapas, testamentos e inventários capazes de ilustrar com precisão a formação do território itaunense a partir do núcleo bonfinense. É o vovô Guará que me ensina em seus textos, aquilo que reproduzo aqui convicto de que vale a pena, um serviço de renovação educacional, para as novas gerações. Uma simplificação em modesto texto corrido, que se pretende mais acessível, mas originado em anotações mais densas e criteriosas.

Foi da solidez dessas primeiras famílias, fixadas entre o Sumidouro e a antiga Conquista, que nasceram os nomes que mais tarde estariam ligados à fundação de Itaúna. Os Teixeira, os Fernandes, os Pereira, todos com ofício definido, propriedades demarcadas e alguma forma de liderança local. Em vez de ruptura, Itaúna representa continuidade. O escoamento natural dos conflitos e das intenções, das disputas por lavra e do desejo por altar, acabou por estruturar um novo centro comunitário ao longo da ladeira da Capela de Sant’Ana.

Entre os documentos mais significativos dessa transição está o depoimento de Manuel Teixeira Sobreira, encontrado no Arquivo Judiciário de Pitangui. Ao lado de Salvador Fernandes do Rego, sobre quem recaem parte das terras fundadoras, ele pede a abertura de uma nova estrada, pois a rota antiga estava impraticável. Recorre ao sargento-mor Gabriel da Silva Pereira para garantir o novo traçado. Nesse gesto, o que está registrado não é apenas uma disputa fundiária, mas uma tentativa de reorganização territorial que permitisse a instalação de nova centralidade urbana. É nesse momento que o nome de Itaúna começa a surgir com alguma distinção.

A fundação de Itaúna é, portanto, o resultado de deslocamentos físicos e simbólicos. Ao mesmo tempo em que se buscavam novos caminhos, também se fundavam novas memórias. Esses caminhos foram abertos por homens livres e por muitos escravizados, cujas mãos silenciosas assentaram os primeiros alicerces da vila. Com o tempo, a Capela de Sant’Ana se tornaria ponto de convergência, lugar de devoção e de registro, berço dos primeiros batismos, casamentos e óbitos de um povoado que começava a assumir seu nome e sua identidade.

Conhecer esse percurso é como descer degraus antigos de pedra e ouvir, entre os ecos abafados, as vozes que fundaram a cidade. Como escreveu João Cabral de Melo Neto, a memória é uma candeia acesa no porão da casa. Vale a pena descer a esse porão, e ali, entre mapas antigos, litígios esquecidos e nomes quase apagados, manter viva a chama que nos lembra quem fomos, para que possamos saber quem ainda somos.