Lima Barreto atualíssimo

Lima Barreto atualíssimo


Segundo Monteiro Lobato, Lima Barreto era facílimo na língua, ao modo das torneiras que fluem uniformemente a sua corda-d’água. Reproduzo um conto dele, do qual me lembrei estes dias. Atualíssimo. Leve. Refrescante.

Abu-Al-Dhudut não usurpou o trono de Al-Patak sem que houvesse grande oposição por parte dos espíritos eminentes e mesmo de províncias inteiras do país. A todas estas, ele subjugou e dominou, excetuando o canato de Al-Bandeirah cuja riqueza e prosperidade eram muito admiradas no país.

Esse canato era governado por quatro ou cinco famílias que, sob o pretexto de terem feito a independência de Al-Patak e o proclamado sultanato, se sucediam no governo da província e a exploravam em seu proveito, tanto nos altos cargos, como no monopólio de bancos, indústrias e a exportação de tâmaras.

Sob o disfarce de auxiliar a lavoura desse fruto, os membros dessas quatro ou cinco famílias conseguiam dos soberanos privilégios e auxílios pecuniários que engrandeciam as suas indústrias, tornavam sem concorrentes os seus produtos e favoreciam grandes lucros nas suas explorações agrícolas.

Temendo que Abu-Al-Dhudut não continuasse, como os seus antecessores, a lhes dar tudo o que pediam, armaram uma grande oposição ao seu governo, agitaram os espíritos e fizeram com que muita gente perdesse haveres, cargos e até a vida. 

Abu-Al-Dhudut, quando se viu seguro no trono, tratou de invadir a província e castigá-la conforme entendesse. Organizou tropas e dispôs as cousas de forma a vencer os recalcitrantes de Al-Bandeirah.

O povo dessa província pôs-se como uma só pessoa ao lado dos oligarcas que o governavam com muita habilidade e tal era esta que ninguém podia supor que o que eles defendiam eram os seus interesses particulares de donos de bancos, de chefes de casas comerciais, de proprietários de minas e fábricas, de ricos cultivadores de tâmaras.

O entusiasmo e o ardor da população pela causa de sua autonomia eram tais que tudo fazia esperar que a guerra civil rebentasse. Mas, como os membros das famílias que governavam Al-Bandeirah eram antes de tudo homens de negócios, de especulação comercial e não tinham interesse em guerrear, mas sim amedrontar Abu-Al-Dhudut de modo a que este não perturbasse as suas existências regaladas, trataram de arranjar as cousas de modo mais cômodo, tanto mais que o sultão continuava no seu propósito de intervenção.

Pondo de parte tudo o que tinham afirmado com tanta altivez, procuraram um príncipe da família de Abu e arranjaram, por alguns milhares de piastras e outros dons, que não houvesse a invasão projetada.

Dessa maneira eles continuaram a fruir e a aumentar as suas riquezas, embora tivessem arrastado, com a agitação que fizeram, com os juramentos que juraram, muita gente à miséria, à enxovia e à morte.

Como foi contado aos leitores, o canato de Al-Bandeirah, depois de arrotar muita farofa, que fazia e acontecia, acabou por comprar a não-invasão das tropas de Abu-A1-Dhudue por bom dinheiro. Essa província de Al-Bandeirah, como se sabe já, é governada por vários magnatas e algumas famílias, entre aqueles conta-se o cide Cinsin Ben-Nhato, que é, a bem dizer, o general da oligarquia do canato.

Ele, quando os tais cultivadores de tâmaras gastam à vontade e ficam encalacrados, corre ao sultão e diz cheio de choro e lábia:

- Majestade; os cultivadores de tâmaras estão morrendo de fome; o produto da venda não paga as despesas que dá o seu cultivo; os grandes empregam toda a sua fortuna para que ele baixe.

Aí ele faz uma pausa e continua alteando a voz:

- É preciso que Vossa Majestade vá ao encontro das necessidades dessa pobre gente que tanto concorre para a grandeza do reino que é de Vossa Majestade.

- Mas como, cide?

- Como? Dando-lhes dinheiro, Majestade.

- Não tenho. O meu tesouro está esgotado.

- Majestade: o poder de Vossa Majestade é grande e há um meio.

- Qual?

- Vossa Majestade decrete um imposto sobre os mendigos do reino que haverá dinheiro para socorrer os miseráveis cultivadores de tâmaras.

Os sultões todos lhe fazem a vontade e os de Al-Bandeirah se blasonam de ricos e trabalhadores.

Há outros casos que hei de contar-lhes, mas agora quero lembrar um muito típico.

Os tais de Al-Bandeirah tinham, como já foi narrado, comprado um príncipe irmão de Abu-Al-Dhudut para que este não invadisse com as suas tropas o canato.

O príncipe, que era seguro, foi em pessoa buscar o preço do negócio. Trotou várias e muitas léguas em camelo e chegou à capital da província ex-semi-rebelde. Falou ao clã e este mandou ordem ao seu tesoureiro, para que lhe pagassem 350 mil piastras.

O irmão de Abu foi logo à presença do funcionário que lhe disse:

- Príncipe: Vossa Alteza poderá ir para o palácio de Vossa Alteza que o dinheiro irá lá ter.

De fato, assim foi e um empregado do tesouro lá chegou com os sacos de ouro. Esperou este que o príncipe contasse o dinheiro. Acabou e exclamou furioso:

- Mas faltam 35 mil piastras.

- Príncipe: é a minha porcentagem. Dez por cento.

O irmão de Abu calou-se.