De mocinhos e bandidos

De mocinhos e bandidos


As fases da vida se sucedem fluindo umas dentro das outras, mas às vezes passamos por um umbral e o tempo se comprime... as transformações acontecem num piscar de olhos.

A minha vida de adulto começou desse jeito.

Eu tinha 16 anos e fui ao cinema com uns amigos. Era dia de semana, centro da cidade, um programa de primeira! Cachorro-quente nas Lojas Americanas, capas de discos numa galeria da Praça 7... éramos uma patota animada, fazendo algazarra por onde passava.

E eis o cinema...talvez o Cine Acaiaca... o filme foi escolhido por um motivo especial: tínhamos informações seguras de que ele mostrava o bumbum da Candice Berger, uma das mulheres mais lindas daqueles tempos!

Devia ser por isso que a censura era 18 anos, mas ficamos indignados! Pra pagar meia entrada precisava mostrar a carteirinha, então, pra não ser barrado pelo porteiro, tinha que pagar inteira. Não teve saída. 

Você pode imaginar aquelas caras lisinhas, nenhum fio de barba, olhando de lado e fazendo pose de maioridade: o porteiro se segurou pra não cair na gargalhada, mas entramos, orgulhosos da nossa esperteza.

O filme se passava no interior americano, mas começou com a gente esfregando as mãos, aguardando a Candice. 

Lá pelas tantas aparece uma aldeia indígena, numa locação espetacular. Era uma grande planície, uma capineira dourada, na base de umas montanhas altas, cortada por um rio caprichoso e bosques, sob a luz magistral da manhã. 

As paisagens naturais sempre me tocaram fundo. 

E havia o começar do dia, com as crianças brincando no leito raso do rio, os homens saindo pra caça nos seus pôneis malhados, as colchas coloridas sacudidas, colocadas pra fora daquelas tendas cônicas espetaculares, que fazem parte do meu despertar para a arquitetura. 

Eu estava entretido, embevecido com aquela cena maravilhosa, em Cinemascope, quando aconteceu o inimaginável.

Os guerreiros tinham saído e ficaram as mulheres, os velhos e as crianças. Foi quando o exército americano, numa cavalgada frenética e insana, invadiu a aldeia. A violência e as cenas explícitas que se seguiram me tiraram o ar. Vi coisas que eu nem pensava que existissem: membros decepados, estupros, crianças empaladas, assassinatos gratuitos... Uma sequência chocante, detalhada e longa. 

Naquele momento, a violência contra os índios, que até então era mostrada no cinema como ato de heroísmo dos brancos, revelou a sua face macabra. E verdadeira: o enredo reconstituía um evento histórico, o Massacre de Sand Creek, ocorrido em 1864 no Colorado. Uma atrocidade inominável contra os índios Cheyenne.

Mas o filme tinha mais ambições. Queria estabelecer um paralelo com a Guerra do Vietnã, que estava em andamento e denunciar o massacre dos vietnamitas. Pelo mesmo exército. 

A guerra estava sendo alvo de protestos, especialmente pelos adeptos da contracultura: Make Love, Not War, (Faça amor e não a guerra) era o dito que corria o mundo. O Festival de Woodstock tinha acontecido meses antes e a simulação dos bombardeios aéreos e dos gritos de dor pela guitarra do Jimi Hendrix, ecoava nos lares americanos, fazendo ruir de vez a legitimidade da invasão de um país pacífico.

Voltamos pra casa mudos... a cena da Candice Berger era apenas um flash, mas nem se fosse diferente teria acalmado as nossas mentes, transformadas pra sempre com a perda da inocência.  

Mais de 50 anos se passaram. Os Yanomamis vivem um drama parecido com o dos Cheyennes e Gaza é o novo Vietnam, bem na nossa frente. 

O silêncio das salas de cinema se espalhou pelo mundo.

*Arquiteto e hippie de coração

FOTO: https://ims.com.br/exposicao/claudia-andujar-a-luta-yanomami-ims-paulista/