Quando a Casa se tornou campo de batalha

Quando a Casa se tornou campo de batalha

Grandes obras carregam, com o tempo, o risco de deixar de ser espelho para virar disputa. A Casa de Caridade Manoel Gonçalves de Sousa Moreira não foi exceção. Se nos primeiros anos o seu nome evocava um pacto coletivo — a entrega de Manoelzinho ao bem comum da cidade —, o passar das décadas a transformou, também, em objeto de poder, vaidade e desentendimento. 

É doloroso registrar isso. Mas necessário. Como me adverte sempre a pesquisa magistral de Guaracy de Castro Nogueira — que volto a visitar como quem folheia um diário não escrito com tinta, mas com consequências —, esquecer as sombras de uma instituição é permitir que elas se repitam. E as páginas que cobrem os anos entre a morte de Manoelzinho e a ascensão dos Gonçalves de Sousa ao controle da Casa são páginas onde a memória se inquieta.

O que se vê, com clareza desconfortável, é que a Casa passou a ser foco de divergências internas, familiares e institucionais. Dr. Augusto, com sua morte, deixou um vácuo que logo foi ocupado de maneira ambígua. Dr. Dario, seu filho, assumiu a provedoria com legitimidade formal, mas carregando o peso simbólico de um nome que, agora, começava a ser associado não mais apenas à doação, mas ao controle. Sua gestão foi hábil em aproximar a Casa dos círculos industriais e financeiros da cidade — e nisso modernizou práticas e reforçou a base econômica da instituição. Mas, ao mesmo tempo, afastou-se da simplicidade que Manoelzinho havia sonhado. O hospital que deveria servir indistintamente a todos começava a refletir, em seus corredores e nas decisões de sua Mesa Administrativa, as divisões que marcavam a elite local.

A crítica mais pungente veio da própria família. Dr. César Gonçalves de Sousa, sobrinho do fundador, em cartas de uma lucidez quase profética, alertava para a corrosão do espírito da Casa. “A união foi a força e está se desfazendo”, escreveu. “Onde está o nosso ideal? Bem sei que a viga principal começou a ruir”. Suas palavras não eram desabafo: eram diagnóstico. Ele percebia que o que estava em jogo não era apenas uma presidência, mas a própria alma da instituição.

E havia razão. A criação da chamada “Cachoeirinha”, braço privado da Santanense, agravou as tensões. Aos olhos de muitos, o gesto representava um passo claro rumo à privatização velada da missão pública que Manoelzinho havia legado. Dr. César lamentava: “Não posso intervir nas coisas do mundo, mesmo quando me estejam certas”. Mas sua ausência prática não era omissão moral. Era uma elegância ética: não queria sujar o nome da Casa com uma disputa que já revelava tons de vaidade.

Enquanto isso, a imprensa começava a ecoar o desconforto social. O Correspondência da Época, em 1957, descrevia a Casa como “uma instituição descaracterizada”, onde o poder de uma linhagem se sobrepunha ao bem comum. O texto refletia a indignação de uma cidade que ainda via na figura de Manoelzinho um símbolo a ser honrado — e que não aceitava ver seu nome manipulado em assembleias cerradas.

Mais grave ainda foi o surgimento da acusação de que a fundação da Casa havia sido transformada, sem o devido processo legal, em associação — um subterfúgio que permitia maior controle interno e menor transparência pública. Essa manobra, realizada sem que se convocasse o Ministério Público como exigia a lei, corroía o próprio fundamento jurídico da Casa. Aqui, novamente, é Guaracy quem nos oferece o mapa preciso: “Não foi um erro de forma — foi um desvio de essência”.

Não se trata, neste capítulo, de narrar um acerto de contas. Trata-se de entender como uma instituição fundada na humildade de uma promessa pode, se não cuidada, ser arrastada para dinâmicas que lhe são alheias. A história da Casa de Caridade é, em boa medida, a história da luta entre a grandeza silenciosa de um gesto inaugural e a tentação permanente do poder.

Por isso, ao recontar estes episódios, não busco condenar nomes, mas reafirmar princípios. Como dizia Saint-Exupéry: “O essencial é invisível aos olhos”. No caso da Casa, o essencial sempre foi a caridade — não o comando. O cuidado dos pobres — não a glória de administrá-los. E se há um fio que devemos resgatar das tramas confusas dessas décadas, é justamente este: o da humildade original, que não se sentava em mesas de poder, mas à beira dos leitos.

Que as palavras de Dr. César sejam aqui o fecho mais justo: “Bem sei que a viga principal começou a ruir”. Que este relato sirva, pois, como um gesto de reconstrução. Porque as Casas de Caridade, como os ideais, não morrem de um golpe — morrem de esquecimento. E contra isso, a memória é nossa viga.

Por Rafael Corradi Nogueira