Tempo de mudança
Nunca me esquecerei desse acontecimento
Na vida de minhas retinas tão fatigadas
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
Tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
No meio do caminho tinha uma pedra.
Não sei se alguma vez Drummond explicou esse seu poema enigmático, escrito há quase cem anos, mas se o fez, a sua explicação seria apenas mais uma dentre muitas. A obra de arte tem vida própria e o artista perde o controle sobre ela: vai ser infinitamente interpretada, seja por pessoas sensíveis ou não.
No caso de “No meio do caminho”, a maior parte das interpretações assume que o poema fala sobre os obstáculos que encontramos ao longo da vida e que dificultam ou impedem a nossa caminhada.
Esta conclusão me parece apressada.
Se nos atermos ao que está efetivamente escrito, sem colocar palavras na boca daquele itabirano genial, e que na definição sucinta e profunda do amigo Oscar Niemeyer, “...era um homem bom”, vemos que Drummond não classifica a pedra, não diz se o seu encontro foi dadivoso ou ruim e nem se queixa de que ela tenha sido um entrave para qualquer ação.
Existem pedras e pedras, grandes e pequenas, existe o granito e a turmalina rosa, quebradiça; o diamante é, e o seixo rolado também. Considerar que uma pedra no caminho é um desastre, é arbitrário: pergunte a um garimpeiro. Um matacão no meio da estrada é um estorvo, mas com três ou quatro calhaus se faz um fogão.
De qualquer modo, remover a pedra não é a única coisa a fazer e nem sempre a mais sensata, como mostra a destruição de algumas serras mineiras.
Drummond diz que suas retinas estão fatigadas, mas que topar com aquela pedra foi algo inesquecível e o inesquecível quase nunca é negativo. Um navegador cansado, no século XIV, ao se deparar com a pedra da Gávea, certamente comemorou, assim como um bandeirante perdido, ao avistar o pico do Cauê: o encontro com certas pedras é motivo de júbilo.
Uma possibilidade mais rica de interpretar aquela obra-prima de Drummond, me veio com a observação de uma saudosa professora, quando disse que a Arte pode provocar deslocamentos.
Gosto de pensar na pedra de Drummond como a própria obra de arte, como aquele evento que encontra as nossas retinas carentes daquele brilho vital e faz com que a gente mude de direção, que dê a volta, que queira subir ou correr.
Uma pedra no caminho, às vezes, assim como a Arte, sempre, nos convida a modificar o nosso ponto de vista, a ver o novo, ou o trivial, com outros olhos. Nos convida a mudar o caminho ou o modo de caminhar.