Sabe com quem está falando?

Sabe com quem está falando?


Conto de Marco Aurélio Baggio, uma deliciosa gargalhada sobre nós mesmos.

Dia desses - anteontem -, estava eu negociando um empréstimo ao banco com o qual opero, quando Alberto - meu amigo gerente de plataforma de negócios - foi abruptamente interpelado por um vistoso cavalheiro, entrado em seus setenta anos. Hábil, gentil, Alberto pediu-lhe que aguardasse uns momentos, enquanto ultimava sua transação comigo. Foi o bastante: o vetusto senhor encrespou: - O senhor sabe com quem está falando?

Conhecendo o Alberto de outros carnavais, intuí logo que ele iria baixar o nível. Sua face ficou lívida de surpresa e de raiva com a interpelação desaforada. Esperei que, na sua reação natural, empregasse o mais forte expletivo da língua portuguesa: - O senhor vá pra puta que o pariu!

Fiquei frustrado: não saiu. Alberto evoluíra, fora treinado em dissonâncias cognitivas, comportamentos operantes, matemas e significantes, dois de paus e valetes. Só eu não sabia o quanto espertara, para maior de espadas.

Meu amigo gerente recobrou-se, olhou firme para o cavalheiro e disse, brando, à meia altura: - O senhor dispõe de tempo? Pergunta desconcertante, que obteve um meneio positivo. - Por favor, então, assente-se.

Uma vez alojado o nobre senhor, Alberto prosseguiu, professoralmente, para a minha delícia e perplexidade.

- Sei. Sei, sim, com quem estou falando. Mas, antes, o senhor me permita discorrer sobre uns eventos antigos.

Ao que tudo indica o Universo ao qual pertencemos surgiu de um megaevento ocorrido há 15 bilhões de anos. Do Big Bang - a Grande Explosão -, o senhor certamente já ouviu falar. De onde surgiram os 125 bilhões de galáxias que, hoje, ocupam 1% dos imensos vazios frios do Universo sideral.

O planeta Terra veio há 4.6, 4.8 bilhões de anos. 

Os mamíferos nasceram há cerca de 220 milhões. 

O senhor austero se impacientou na poltrona, como que querendo escapulir.

- Calma, que o Brasil é nosso! O senhor me perguntou, agora vai me ouvir! Continuando, há 6, 7 milhões de anos começaram a surgir espécies de hominídeos no interior da África. Várias espécies estão sendo ainda hoje descobertas pelos paleontólogos. Uma delas deu origem a um tipo, o Homo sapiens, há uns 500.000 anos.

Há 10 mil anos, os homens estabeleceram os primeiros aldeamentos em Jericó, na Palestina. Há 6, 7 mil anos, criaram escritas e começaram a fazer História; 26 civilizações tiveram origem, desenvolvimento, apogeu e extinção. A nossa, atual, ocidental, teve origem na Índia, passou pela Pérsia, pela Mesopotâmia, recebeu influência egípcia, baseou-se no livro do monoteísmo hebreu, brilhou sob o sol da Grécia, expandiu-se sob o gênio imperial romano, enfunou-se dos ensinamentos de Jesus de Nazaré, tornou-se cristã, eclesial, medieval, europeia, enfim, tornou-se essa civilização ocidental capitalista, urbana, belicista, predadora, industrial, pós-moderna, informatizada, de matiz cristão, altamente consumista e norte-americanizada.

O homem é um animal que leva 20 a 25 anos para ser montado, até ter alguma prestância. Dos 25 aos 50 anos, reproduz-se e mantém uma produção desvairada. Dos 50 aos 70 anos ou mais, está em processo de desmanche, em vias de desembarque.

Existir é elevar-se para fora de si, afirmando-se como presença e como agente de realização da própria vida. Ex(s)itir - ex(s) isto, do latim, é “postar-se, de si para fora de si”, dispondo-se a um intercurso convivencial com os outros todos dessemelhantes.

É nesse intervalo entre seu nascimento e a sua morte que se dá a viagem, a travessia. O senhor precisa do outro. E pode, às vezes, escolher como vai lidar com ele. A existência é todo esse admirável transcurso do que o ser-homem efetivamente se torna na sua realização.

Com arrogância, presunção, mandando, oprimindo, humilhando, explorando, tiranizando, espoliando, destruindo, exterminando? Exercendo do alto de seus coturnos sua prepotência?

Ou sendo amável, compassivo, paciente, companheiro, amigo, associativo, solidário, ameno? Cordato e bondoso? Ou sendo mutável, mutante, irritadiço, variável e imprevisível, arestoso e querelante? Racional, lógico, decente? Ou irascível, passional, de-caído? Como é que vai ser?

O senhor escolhe seu estilo e determina seu destino.

Então, meu caro senhor, percorrida toda essa trajetória cósmica, agora posso responder à sua indagação pretensiosa.

Eu estou falando com um entre esses 6 bilionésimos de seres transeuntes, devoradores da Terra, fenecentes e vulneráveis, que escondem seu medo da morte por detrás da prepotência e da arrogância. Então eu sei com quem estou falando. Com um insolente predador social que tem cu e tem medo, um sujeito mal-amado por todos aqueles a quem oprimia com uma chave de carteirada. Estou falando com uma coisa ignóbil, desprezível, cujo contato deve ser evitado por todos aqueles que se preocupam em sair do alcance de sua alça de mira. Estou falando com a própria insignificância perante o Universo. Sei. Sei, sim, com quem estou falando! E com o vice treco do subtroço de alguém mínimo. Estou falando com um sujeito mal-amado, que se deixou azedar pela vida e que, breve, começará a apodrecer a partir de suas excretas. Estou falando com um rechonchudo verme que sobrenada na própria merda de sua presunção, nessa Terra.

Meu amigo, o gerente de banco Alberto havia terminado.

Uma aglomeração de curiosos clientes havia-se formado em torno de nós. Permaneci, basbaque, afundado na poltrona. Agradavelmente surpreso com a erudição da aula magna que havia proferido o catedrático, perdão, o gerente.

Dois vales decrescentes de lágrimas escorriam, verídicas e sentidas, dos baços olhos do magnífico senhor, agora reduzido à grandiosa pequenez de sua dimensão.

Ele apenas, contrito, murmurou: - Desculpe-me.

E debulhou-se em poderoso restaurador choro. Convulso.

Naquele resto de tarde, não houve mais expediente bancário. Uma excelente lição de vida havia sido sorvida por todos os presentes.

No dia seguinte, voltei lá, decidido a emprestar meu dinheiro ao banco de meu amigo Alberto por uma taxa menos usurária. A gente nunca sabe de onde sai a sabedoria. Às vezes, é de estranhos buracos ou então de inusitados encontros. Agora já sei quem sou quando estou de mim falando: um cisco no olho do Universo. Um mero cisco significando quase nada no olho do Universo.