O fio que tece a memória

O fio que tece a memória

Na curva das águas do São João, quando o século XVIII ainda ecoava em hábitos e esperanças, um punhado de nomes — Gonçalves, Moreira, Sousa — selou com suor e estratégia o início de uma saga que moldaria não apenas a economia, mas o imaginário social de Sant’Ana. Em lugar de títulos de nobreza, aqueles homens se ancoraram em gestos precisos: doações de terra, casamentos entre linhagens, assembleias fundadoras e a fé obstinada no trabalho. O fio que deu origem à Santanense não era apenas de algodão, mas também de decisão.

Manoel José de Sousa Moreira não só cedeu a terra para a construção da fábrica: assumiu com destemor o ônus de um empreendimento sem garantias. A história o registra como prudente e exigente — redigia, fiscalizava, assinava. Atuava tanto no “Diário” da empresa quanto nas cartas à Inglaterra em busca de máquinas. Era o administrador e o homem da escrita. Ao seu lado, uma rede informal de responsabilidades familiares e técnicas permitiu o nascimento da companhia. Detalhes como esses, que escapariam à memória comum, foram resgatados com paciência e rigor por Guaracy de Castro Nogueira, cuja pena, nossa base de pesquisa, soube costurar os fios documentais dessa trajetória com o esmero de quem compreende que narrar a história local é também restaurar sua espinha dorsal. De Eugênio d’Azevedo & Cia, no Rio, à contabilidade confiada a jovens da própria comunidade, tudo era construído com o que se tinha: esforço, confiança e reputação.

O cotidiano inicial da Santanense lembra mais uma epopeia de sobrevivência do que um plano de negócios. Não havia estrada de ferro, iluminação pública, nem sequer transporte individual motorizado. Os carros de boi, que venciam a serra com 40 quilômetros de jornada entre Henrique Galvão e a vila, eram metáfora viva da resiliência local. As máquinas vieram da Inglaterra, os motores dos Estados Unidos. A energia vinha das corredeiras, canalizada como se fosse promessa. E era.

O preço foi alto. Muitos tombaram no caminho, como registra o próprio título do fascículo. Manoelzinho, por exemplo, deixou o cargo de presidente e depois também o de tesoureiro, vendo-se em meio às desavenças políticas da companhia e às agruras de manter uma firma sem recursos. Chegou a empenhar ações e bens, sem jamais abandonar a honra. Outros desistiram por medo do risco, por esgotamento ou por desconfiança no modelo adotado. Mas os que permaneceram — especialmente os irmãos Gonçalves — transformaram esse percurso em fundação.

Dr. Augusto Gonçalves de Sousa assumiu a presidência em momento crucial. Sua eleição unânime representou mais do que um gesto administrativo: foi um pacto social entre acionistas, fornecedores e operários. Ele trouxe estabilidade, continuidade, visão de longo prazo. Redigiu o estatuto, definiu os percentuais de distribuição, articulou o cotidiano e, sobretudo, garantiu que a fábrica deixasse de ser uma promessa para se tornar um marco.

A inauguração, em 7 de setembro de 1895, foi mais do que uma cerimônia. Foi uma consagração. Com milhares de operários em Belo Horizonte e um mercado consumidor em expansão, a fábrica de Sant’Ana tornou-se orgulho local. Num tempo em que o Brasil engatinhava rumo à industrialização, ela já operava com máquinas estrangeiras e gestão própria. Nascia ali não apenas uma empresa, mas um paradigma: o de que, mesmo longe dos centros decisórios, uma cidade do interior podia inaugurar o seu futuro.

Esse modelo, com o tempo, espalhou raízes profundas. A memória dos nomes que ajudaram a fundar a Santanense não é apenas uma lista de benfeitores. É um modo de pensar a cidade — com trabalho, pragmatismo e sentido de comunidade. Cada ata de assembleia, cada balanço assinado, cada engrenagem montada à mão traz a marca de um tempo em que tudo se fazia a partir do quase nada.

Hoje, quando as transformações tecnológicas nos afastam do contato direto com a matéria e com a história, vale lembrar que Itaúna nasceu de decisões concretas e gestos silenciosos. Da persistência de homens que, mesmo diante das adversidades, não fugiram do combate. Honrar essa memória não é saudade: é método de projeção das boas qualidades de nossas raízes.