João G. Rosa contado por Marco Aurélio Baggio

João G. Rosa contado por Marco Aurélio Baggio


Contos de Marco Aurélio Baggio foi o presente que meu vovô Guará me deu no natal de de 2010 – o último que ele viveu nesta existência. Nesta obra, Baggio, psiquiatra belo-horizontino da Academia Mineira de Letras nos brinda com escrito que apenas repasso ao querido leitor hoje. Sobre os deserdados da sorte – tão presentes invisivelmente.

Joãozito teve uma infância sofrida. Detestava a intromissão dos adultos em sua intimidade. Brincava solitário ou com amiguinhos e ouvia os casos na venda de seu pai. Floduardo. Cresceu ávido de saber e talentoso para línguas. Como médico, no tugúrio de Itaguara, conheceu a miséria e a dor humana desamparada. Constatou que a Medicina dava pouco alívio ao sofrimento dos doentes. Como cônsul em Hamburgo vivenciou a estupidez decadente de uma Alemanha hitlerista. Compadeceu-se dos perseguidos pela fúria de Wotan. Em 1947 esteve no pantanal mato-grossense.

Em 1952, reencontra a pobreza e a dureza da vida no interior mineiro. Nada mudara para melhor. Homem de fino pathos, Guimarães Rosa sempre soube da precariedade da vida das pessoas. Por experiência própria, aprendera que o homem é um ser, de início, desequipado, desprotegido, acossado por necessidades e por insuficiências, quase que o tempo todo. Nascido incompleto, postado na sua querência de origem na margem primeira da vida, o homem tem que, cedo e rápido, desenvolver seu potencial - sua inteligência e seu talento - para, logo, adquirir recursos vivenciais e apetrechamentos que o capacitem a se situar melhor na travessia do enorme rio da vida em bamba canoa, por sobre o bambalango das insurgências e dos acontecimentos.

O vetor pulsional do ser humano o coloca em prolepse, voltado para a busca dos objetos completadores e satisfatores que, sempre, se postam lá longe, na outra margem do rio da vida. É destino o homem ser objeto e sujeito de sua própria busca.

O homem João Guimarães Rosa viveu marcado pela urgente necessidade de dar conta das contrariedades pulsionais que o acossavam. Ouvindo os “causos”, viveu em entranhado drama, percebendo que os seres humanos, em sua derrelicção, espremiam expedientes para dar conta de sair de seus embondos e de seus impasses. Os “causos” de que tanto gostava de ouvir contar eram exemplares. Neles encontrava a intendência das situações, logo seguidas da logística disponível à pessoa. A seguir, evolvia as táticas para o enfrentamento dos desafios e dos problemas. Tais peripécias desvelavam a riqueza psíquica que a pessoa desenvolvera, muitas vezes sem saber que continha tais recursos.

Recriados na oficina linguística de Guimarães Rosa, os causos adquiriram a grandeza literária por suas mãos, tornando-se contos. Pode-se perceber a estratégia empregada na guerra da vida pelo personagem. E desse amplo cenário linguístico Rosa inoculava pérolas e peças de sua concepção de vida. Sua cosmovisão sempre visava alcançar o excelso, o transcendente e o infinito. 

Ele era, acima de tudo, um Homem Bom. Doce. Meigo. Suave. Rosa. João é deus conosco. Guimarães é cavaleiro andante, cavaleiro combatente. Rosa é símbolo da beleza e da bondade. Seu apelido era “burgo do coração”: “Cordisburgo». Assim o chanceler João Neves da Fontoura o convocava. Joaozito para os íntimos, cedo dotou-se de forte sentimento de solidariedade para com a pobre humanidade. Metafísico, místico, cristão, crente na ressurreição e na reencarnação, vivia como um sacerdote da condição humana. Homem dotado de compaixão legítima para com a humanidade, descrente da política, o diplomata João Guimarães Rosa foi o embaixador que, através da língua, aspirava trazer lenitivo e conserto para esse nosso mundo sem juízo e desmastriado.

Os deserdados da sorte são os desdichados, os desgraçados de pouca fortuna. São os humilhados e ofendidos pela baixa posição que ocupam no estamento da sociedade. Constituem a massa de intocáveis, de parias - os Dalits - de destituídos, aqueles que, no Brasil, chamamos, eufemisticamente, de “carentes”. Despossuídos de quase que de todos os equipamentos humanísticos, dispondo apenas de seu corpo e de sua vida para se apresentar ao mercado.

Guimarães Rosa percebeu que o homem nasce inerme, raramente desenvolve-se por inteiro, ficando áreas e partes obscuras de sua personalidade incultas,  aguardando oportunidade de virem a ser realizadas e iluminadas. É dessa dotação diafótica, sombria e torva, de onde medra a maldade, a inveja, a perversidade - o crime, enfim. Movido por verdadeira compaixão pela precariedade da condição humana, Rosa povoou sua ficção com os seres incompletos, seres de exceção, organizando um roteiro de personagens empenhados na diligência de vir a dar conta de iluminar parcelas crescentes de suas vidas. Compôs assim uma literatura de comiseração autêntica, não devocional e não-evangélica - para além das Escrituras.

“Só o epitáfio é fórmula lapidar.” Cada conto seu é exemplar. Guimarães Rosa pôs em prática sua convicção de que a ação arguta, obtida pelo aperfeiçoamento da consciência egoica do personagem, era quase sempre a chave, a solução resultante de boa qualidade para a superação da inicial inferioridade. Coragem. Alegria. Façanha. Lucidez e discernimento: eis os atributos componentes do bornal para a travessia da vida.

“No sertão, cada homem pode se encontrar ou se perder. As duas coisas são possíveis. Como critério, ele tem apenas sua inteligência e sua capacidade de adivinhar.” Fortuna Crítica: p. 94.

O instrumento que esgrimiu com tanto esmero foi a palavra, palavra candente, brasa-assoprada, alimpada e renovada.