Com o que você trabalha?

Com o que você trabalha?


O clichê nos explica que o ano do brasileiro começa após o carnaval. É oportuno darmos uma olhada com o que trabalhamos, já que desde a primeira semana de dezembro, alguns podem ter se esquecido. Não me refiro ao ofício, à profissão, que alguém exerce. Mas aquilo que a pessoa tem em si para trabalhar, a ferramenta interna com que a pessoa se coloca na labuta. Por exemplo, um conhecido sempre me disse que trabalha com preguiça. Rocky Balboa trabalhava com motivação. Tio Patinhas trabalha com ganância. O Mussum trabalhava com sede. Guimarães Rosa trabalha com fazimento. O Pablo Marçal trabalha com mentira e o Pablo Vitar, com medo de engravidar. Neste início de 2024 vale um exame de consciência sobre aquilo com o que trabalhamos, como cidadãos produtivos. Na atualidade, virou tema delicadíssimo dizer que a grama é verde e que não faz sentido cortar fora a perna de um menino de cinco anos, apenas porque ele afirma que é um pirata. Logo, eu os pergunto, nobres leitores (lembrando que aqui usei o plural-comum-de-gênero, sem nenhum tipo de privilégio ou discriminação): com o que você trabalha, agora que o ano está começando?

Já na arrancada, vejo um problema complicado para respondermos a esta pergunta. O tão esperado início do ano, logo após o carnaval, termina exatamente no momento em que alcançamos a data marcada para ele. E com esse fim acabam também os anseios guardados para este momento. Ninguém mais pensa sobre começar o ano. Ativa-se o piloto automático. Um modo-espera da próxima sexta-feira “mei-dia”. O pensamento, que há poucos dias era feito em “início e fim de um ano produtivo”, passa a ser reciclado numa escala de tempo semanal. Os nobres projetos pessoais de Reveillon são cuidadosamente guardados para o próximo festejo de ano novo. E o país percebe que nossa cultura não precisa de um pós-carnaval para iniciar o movimento produtivo. Aquele do emprego e renda. Na prática, o modelo brasileiro de momentum produtivo não dá uma pausa no fim de ano. É que, do ponto de vista de representatividade política e participação social, ele é o mesmo no decorrer do resto do ano: escorado em sextas-feiras e feriados. Dezembro e janeiro é como se fosse exatamente isso, no inconsciente popular brasileiro: o sextou do ano. Com uma diferença, a sensação (grife-se a palavra sensação) de exercício da cidadania fica mais completa, pois o período desagua na suposta liberdade do carnaval (que veremos; é na verdade uma prisão). 

Ou seja: nunca estamos falando mesmo do início do ano, no pós-carnaval, mas do término da grande sexta-feira anual. Aquela em que a cultura brasileira apenas faz o povo confundir e propagar no senso-comum, como uma pausa. Um período da cultura Macunaíma, presente no ano inteiro, que associa o brasileiro numa ilusória recompensa do sucesso financeiro, com preguiça, glutania e acomodação. O décimo-terceiro salário vira o combustível de uma brasa do imaginário tupiniquim (lamentavelmente recheado de marxismo), uma fantasia irreal em que o topo da cadeia alimentar financeira, passou o ano em festa, como opressora da mão-de-obra que verdadeiramente sustentou a economia nacional, foi sempre elogiada nos discursos políticos, e agora tem a oportunidade de se jogar (e experimentar aquilo que cobiçou durantes as infindáveis horas de trabalho do ano). 

Cá entre nós, após algumas décadas testemunhando este movimento, dá para chegarmos à conclusão de que nada disso tem relevância para o verdadeiro movimento produtivo que atravessa todos os 365 dias do ano, nas mais diferentes indústrias – do turismo e lazer à produção de bens de consumo, ou de bens de capital. O que realmente sempre moveu nosso Brasil foi a família e a simplicidade de um bom dia de trabalho, amparado pela motivação dos filhos na escola. Independentemente das polêmicas sensitivas instauradas pela modernidade, do carnaval e da cultura macunaímica – do malandro.

O ano do brasileiro não começa depois do carnaval. Mas depois da família, do simples e do tradicional. Independentemente da classe social ou da preferência político-ideológica.