O cuspe - PARTE 2*

O cuspe - PARTE 2*


Cândida saiu do presídio muito mais triste do que quando chegou lá, estava pensativa, na verdade encabulada. Começava a achar que tudo aquilo ia terminar muito mal, esses presságios de mulher, um sexto sentido, gostaria mesmo era acreditar que no fim ririam de todo o acontecido. Foi então que passou-lhe pela cabeça ir ter com o capitão interceder pelo portuga, pedir que ele retirasse a queixa, quem sabe pedir desculpas, talvez ele ouvisse a mulher aflita e se compadecesse. 

  Resoluta e mais animada foi até a Alameda dos Tenentes, nº 245, bem no centro da cidade, ao lado do Banco da Lavoura e em lá chegando foi direto, tocou a campainha, esperou ansiosa, como demorasse, tocou segunda vez, terceira e quarta vez, quando uma voz ao seu lado lhe disse que o capitão não estava, pois havia viajado com a família para a roça, que fica lá para os lados do capão miúdo. Agradeceu, saiu de fininho, olhos grudados no chão, estava dum jeito que dava dó, totalmente desconsolada.

O jeito era passar no advogado e saber dele se alguma coisa tinha mudado, se o Juiz já despachara e se não era o caso de pagar uma fiança, porque como ele dissera, não era sequer um crime.

 Dona Cândida chegou no escritório sentindo palpitações. Foi informada pela secretária que o advogado não estava no momento, mas que ele não iria demorar. Se ela quisesse esperar, seria mais ou menos vinte minutos, então ela sentou-se.

 Dessa vez a secretária estava errada foram apenas cinco minutos. O Dr. Silveirinha já chegou dizendo que estivera com o Juiz e que ele se comprometeu em examinar o caso e despachar no dia seguinte. Todas as esperanças do mundo voltaram e um sorriso iluminou o rosto de Dona  Cândida, para não perder mais tempo perguntou:

  - Que horas posso passar aqui amanhã?

  - Certamente às 16:00 horas dona Cândida.

  - Amanhã estarei aqui em ponto, muito obrigada. 

 Seria uma noite difícil de passar, as horas seguiriam umas às outras lentamente, contudo se no dia seguinte o querido marido estivesse de volta são e salvo terá valido a pena a espera e a insônia. Surpreendentemente dona Cândida adormeceu antes da meia noite e só acordou quando o galo cantou por volta das 05:00 horas da manhã. Levantou-se tomou um banho de chuveiro demorado, perfumou-se toda e vestiu o melhor vestido de festa de seu guarda roupas. Fez o almoço como de costume tentando de todas as formas preencher o tempo até que, pudesse se dirigir ao escritório de advocacia para saber qual o veredito do Juiz. 

 Quando deu 15:30 ela passou um perfume de alfazema e desceu calmamente a rua, porque pretendia gastar aquela meia hora numa caminhada vagarosa para, como dissera, chegar pontualmente às 16:00 horas no escritório do doutor.

 Foi exatamente o que aconteceu chegou pontualmente, sendo introduzida pela secretária na sala do Dr. Silveirinha que a convidou para sentar-se e perguntou se ela não queria um cafezinho, o que ela dispensou perguntando logo em seguida: 

  - E daí que foi que decidiu o Juiz?

  - O Juiz despachou, mas não decidiu nada. 

 A aflição de Dona Cândida saltava aos olhos, o choro foi instantâneo e inconsolável, soluçava tanto que a cadeira rangia. Dr. Silveirinha tratou logo de ir dizendo que nem tudo estava perdido, que despachos dessa natureza eram comuns, pois o Juiz antes de decidir, costuma mesmo submeter ao Promotor de Justiça, porque ele é o titular da ação penal.

 Dona Cândida explodiu:

  - Não quero nem saber. Foi só um cuspe. Isto não é nem mesmo um crime. Isto tudo é pura maldade. É porque ele é pobre, de outro lugar e não tem as costas quentes.

  - Dona Cândida lhe asseguro. Amanhã o delegado vai chegar e vou estar na delegacia logo cedo e só saio de lá depois de pôr em liberdade o Gonçalo.

 Mais uma noite, a tortura parece não ter mais fim. Como está o Gonçalo? Será que está comendo? Dormindo? Afinal tadinho dele, foi só um maldito cuspe na hora errada e na pessoa errada.

 Dessa vez dona Cândida não pregou os olhos, viu o sol se pôr e o viu nascer de novo. O galo cantou no horário, ela se levantou tomou o costumeiro banho matinal, mas não se livrou das olheiras, tinha o rosto descaído, era visível o cansaço. Agora era arrumar-se e ir fazer plantão na porta da delegacia. 

 Ao chegar viu de longe o Dr. Silveirinha, que acenou e entrou na delegacia, indo direto para a sala do delegado.

Como esperado o delegado ouviu um a um e por fim o Gonçalo. Achou tudo aquilo um disparate, reconheceu que tudo podia ter sido resolvido pelo Juiz ou mesmo o promotor. 

 O Capitão mesmo após ser ouvido, não arredou pé, ficou ali parado de prontidão para ver o desfecho, não estava satisfeito, queria porque queria, que sua honra fosse lavada com a manutenção da prisão. 

 O Delegado chamou o Silveirinha. 

  - Olha isto tudo não passa de uma tremenda bobagem, mas tem o problema de ser com uma autoridade, que no caso é o capitão e você sabe melhor do que eu, que ele é o cão chupando manga. Depois o portuga vem fazendo isto há muito tempo, não que isto justifique, mas olha no que deu. O Sr. seu Silveirinha tem que levar tudo a juízo não podia esperar até hoje, daí tirou de minhas mãos a decisão, que agora depende do Meritíssimo Juiz Agenor Antunes, se eu fizer como o Sr. quer, amanhã já não serei o delegado aqui, porque o capitão vai pedir a minha remoção. Estamos num regime de exceção, com os militares no poder, todo militar de qualquer patente se acha no direito de usar todo o poder. Bem, na sua profissão às vezes é preciso contar com a sorte e parece que desta vez ela vai lhe sorrir favoravelmente, porque vou determinar ao carcereiro que o solte imediatamente, porque ele não cometeu nenhum crime, apesar da queixa ser de desacato e ameaça, o que não foi sustentado por qualquer das testemunhas e de mais a mais o capitão me deve essa a muito tempo e chegou a hora da desforra. Ao sair doutor, por favor, não diga nada, exceto à esposa do portuga e isto em seu escritório, porque antes do meio dia o Sr. Gonçalo estará em casa.

 Gonçalo foi conduzido no camburão até sua casa. Desceu mais aliviado do que envergonhado, abraçou dona Cândida por longo tempo. Ergueu, por fim, a cabeça e cuspiu por cima do ombro esquerdo, carimbando em cheio o paletó do Dr. Silveirinha, que só não morreu de tanto rir, porque não era a hora.