Muito além de debater o aborto e a união homoafetiva

Muito além de debater o aborto e a união homoafetiva


Temas sensíveis dormitam no debate por anos, a fim de que visões de mundo conflitantes não destruam laços de amizade, familiares ou, pior, culminem com uma cisma social polarizado que coloque a agressividade como ferramenta trivial na rotina pública. Tema sensíveis são aqueles que nos levam a ficar revoltados com quem enxerga o mundo diferente da gente. São aqueles que nos levam a questionar a própria humanidade de quem não consegue ver aquilo que está claro para a gente. Exemplo fresquinho, desta semana mesmo? Consigo citar para os dois polos ideológicos que habitam nossa pátria-mãe gentil. Li um desabafo de um homem progressista revoltado contra a votação do projeto de lei que acaba com a união civil homoafetiva. Ele mesmo já tinha se unido a outro homem e narrava a própria convivência. Chamava os conservadores que promovem a nova legislação de “terra-planistas constitucionais”. Também li um desabafo de uma mãe conservadora arrasada com a possibilidade de o aborto ser legalizado em bebês que possuam menos de três meses na barriga da mãe. Ela mesma tinha realizado um aborto na adolescência e relatava a memória dolorosa de ver o corpo de seu filho ensanguentado num vaso sanitário. Chamava os pró-abortistas de assassinos.

Não invadir a liberdade de consciência alheia, quando ela agride a nossa visão, é o tema que realmente está em pauta. Mas não está explícito. Por quê? Pois não está em debate uma decisão considerada optativa pelos dois lados. São definições que agridem os direitos fundamentais da humanidade: para quem defende a união homoafetiva está em jogo o direito constitucional a formarem família perante a lei, para quem luta contra o aborto está em jogo o direito à vida de um ser humano que não em culpa do desafio ou da conveniência que a mãe possui.

A constituição, as leis e autoridade do Supremo e do Congresso – no frigir dos ovos – é que possuem a legitimidade para determinar a todos nós brasileiros, afinal, qual a conduta devemos obedecer nestes dois casos, mesmo que não concordemos. Eis o Estado Democrático de Direito no mais puro cumprimento de sua pesada função. O ponto de vista de uma religião, como a católica, se exprime sempre na forma de vida considerada ótima. Enquanto para o não-crente, qualquer forma é ótima, desde que não impeça as escolhas de outrem.

No entanto, neste confronto aparentemente claro, é preciso ir mais longe antes de acatar docilmente a laicidade (incompreendida) do Estado e o triunfo da religião fundada pela Revolução Francesa: a religião que tem a adoração hedonista do ser humano e seu prazer conveniente, a religião da ciência e da razão. Afinal, o império da lei deveria ser fruto da fundação democrática que o sustenta. E esta base legitima a vontade de um povo, ainda que este povo seja profundamente religioso. Ou, como nos explicou com precisão o Cardeal Maria Martini em seu diálogo com o ateu Humberto Eco: “não se pode falar das “leis do Estado” como de algo absoluto e imutável. As leis exprimem a consciência comum da maioria dos cidadãos e tal consciência comum é submetida ao jogo livre do diálogo e das propostas alternativas, que têm por base (ou que podem ter por base) profundas convicções éticas. Logo, é óbvio que movimentos de oposição, e, portanto, também a religião católica e seus fiéis, podem tentar influir democraticamente sobre o teor das leis que não considerem correspondentes a um ideal ético que lhes pareça não simplesmente confessional, mas compartilhável por todos os cidadãos. Aí reside o delicado jogo democrático que prevê uma dialética entre opiniões e crenças na esperança de que, desta troca, cresça aquela consciência moral coletiva que está na base de uma convivência ordenada”.

Mas se está claro que há legitimidade em uma maioria de cidadãos religiosos tentarem ver sua visão de mundo refletida nas leis do país que vivem, alguém poderia dizer que é igualmente legítimo que ateus/leigos ou progressistas confrontem e opinem sobre aquilo que os dogmas, doutrinas e orientações papais dizem dentro do âmbito da Igreja. Será que é? O próprio ateu Humberto Eco envia, em troca uma carta para o Cardeal Martini, neste diálogo de altíssimo nível, em que ele faz um apontamento destacável: “não tenho nada a objetar que a religião muçulmana proíba o consumo de substâncias alcoólicas; se não estou de acordo, não me torno muçulmano. Não vejo por que os leigos devam se escandalizar porque a Igreja Católica condena o divórcio: se alguém quer ser católico, que não se divorcie; se quer divorciar-se que se faça protestante; e reaja apenas se a Igreja quiser impedir que você, que não é católico, se divorcie. Confesso que me sinto até irritado diante dos homossexuais que querem ser reconhecidos pela Igreja, ou dos padres que querem se casar. Quando entro em na mesquita, eu tiro os sapatos, e em Jerusalém aceito de em alguns edifícios, aos sábados, os elevadores andem sozinhos, parando automaticamente em cada andar. Se quero manter os sapatos ou comandar o elevador a meu bel-prazer, vou para outros lugares. Há algumas recepções (laicíssimas) em que se exige o smoking e cabe a mim decidir se quero me submeter a um hábito que me irrita porque tenho alguma razão imperiosa para participar de tal evento ou, se quiser afirmar minha liberdade, ficar em casa”.

Entender e respeitar conceitos, sabendo onde é legítimo modificá-los me parece um caminho simples de resolução dos problemas atuais, mas que lamentavelmente tem sido dobrado pela proteção da conveniência, antes dos diretos absolutos.